sábado, 8 de dezembro de 2012

FILME: «Amour» de Michael Haneke

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Foi há tanto tempo, que La Féria ainda criava espetáculos interessantes no pequeno teatro da Casa da Comédia ali às Janelas Verdes. A revolução de Abril estava fresca e sobravam oportunidades para propostas em rutura assumida com os bafientos valores do salazarismo-marcelismo.
Uma noite estávamos a ver «o Evangelho Segundo Pier Paolo Pasolini», quando uma senhora a nosso lado começou a sentir-se incomodada com a nudez dos atores e com as cenas em que eles fingiam comer excrementos.
Impedida de sair, já que obrigaria toda uma fila do anfiteatro a erguer-se, ela inclinou a cabeça para o colo e recusou ostensivamente  partilhar tal vivência enquanto ia dizendo monocordicamente «Minha Nossa Senhora!», como se em processo de auto-hipnose.
Também por essa altura, um dos filmes mais radicais estreados no «Satélite», que ficava no edifício do antigo «Monumental», chamava-se «Irei como um Cavalo Louco» e era assinado pelo Fernando Arrabal.
Numa cena igualmente a contracorrente com os então execrados valores burgueses, uma espectadora irada comentava: «Vem uma pessoa ao cinema para se divertir!». Já não me recordo se saiu da sala se ficou a espreitar pelo canto do olho os atores a apreciarem miolos ainda frementes de um cérebro acabado de abrir ou rosas «perfumadas» com a passagem por entre as nádegas de uma das personagens femininas.
Mas, quarenta anos passados sobre a realização deste filme, reencontramos uma dessas atrizes, Emmanuelle Riva em papel de anciã no mais recente filme de Michael Haneke, «Amor», que acaba de se estrear nas salas lusas depois de ganha a Palma de Ouro em Cannes, seis meses atrás. E que filme grandioso é!
Completamente desindicado para os que ainda continuam a querer enfiar-se numa sala escura para se divertirem, mas a colocar questões de consciência a quem tiver posições firmes (e reacionárias) contra a eutanásia. No outro lado da balançado, que demonstração notável do que é uma realização e interpretações super superlativas!
Nele encontramos Georges e Anna na pele de um casal de professores de música reformados, que irão passar por terrível provação: ela vai sofrendo ataques cardíacos, que a debilitam, limitando-lhe sucessivamente a mobilidade e a comunicação. Mas, extremoso velho amante (a recordar a bela canção de Brel!), Georges cuida dela durante meses sem fim, apenas ajudado, aqui e além, pelos porteiros (com Rita Blanco num pequeno desempenho!) e por enfermeiras de escassa sensibilidade.
Até não poder mais e apostar num definitivo ponto final!
Ao sair para o átrio levamos o incómodo de termos vivido um par de horas a contas com os nossos próprios medos e inquietações. Porque (quase) todos iremos envelhecer até quase à decrepitude e pôr-se-á sempre a questão de quem de nós cuidará. Ou de como teremos forças para nos encarregarmos das limitações de quem sempre nos acompanhou anos a fio…
E não deixa de ser curioso como, de jovens que éramos na época em que os cravos floriam, fomos sendo vencidos pela passagem dos anos e, mesmo relativizando as marcas das rugas no rosto ou dos cabelos brancos, não conseguimos iludir os receios suscitados pela incontornável aproximação da morte...

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