quinta-feira, 23 de maio de 2013

MEMÓRIAS: Puerto Montt, Chile, 1989


Os acasos da vida de marinheiro, quando ainda vivia as graças do mar, levaram-me a Puerto Montt no verão austral de 1989, apenas alguns meses passados sobre a derrota de Pinochet no referendo, que o forçara a entregar o poder a quem viesse a ganhar as eleições a organizar nesse mesmo ano.
A experiência dessa viagem pelos mares sul-americanos revelava-se até aí prenhe de contrastes: começara no Brasil aonde vivera a festa de Iemanjá na Baía e o Carnaval na Avenida Rio Branco, mesmo à beira do inacessivelmente caro Sambódromo, e prosseguira por uma Argentina, aonde Menem estava em vias de substituir o primeiro presidente democrático subsequente à terrível ditadura de que ainda ecoavam os seus mais sinistros efeitos na Escola dos Mecânicos da Armada diante da qual era forçoso passar no trajeto entre o portaló e a cidade. Estivera quase ao lado dos leões marinhos de Puerto Madryn na costa patagónia, aonde andavam por perto os esguichos regulares das baleias e deslumbrara os olhos no Estreito de Magalhães ou nos glaciares azul turquesa da Terra do Fogo.
Chegara então a esse Puerto Montt, de que captava como primeira imagem a de miúdos em pequenos barcos a colarem-se ao casco do paquete para pedirem comida. E ficava a questão: mas, então, este não era o país aonde as teorias do Friedman tinham conduzido a tal desenvolvimento, que a riqueza via-se a crescer a olhos vistos segundo os seus entusiásticos defensores?
Tenemos hambre! - diziam os miúdos enquanto estendiam os braços. E lá os tripulantes da secção de Câmaras se encarregaram de lhes despachar alguns sacos com que iludissem o escândalo passível de ser visto pelos passageiros. Mas estes estavam com a atenção no outro bordo, aonde a escada os fazia aceder ao cais.
Para irem aonde? Já não recordo, mas provavelmente para excursões pela Patagónia chilena, que ficava ali mesmo a jeito!
À Casa da Máquina chegava entretanto uma recomendação: se quiséssemos ir a terra, teríamos de ter em conta o recolher obrigatório em vigor a partir da meia-noite!
Com falsa ingenuidade perguntávamos ao agente:
- Então, mas a ditadura já não caiu com o referendo de outubro?
Manifestamente comprometido o homem lá ripostou:
- Mas ainda é o general quem manda!
Na sua imperscrutável expressão de pena, não deu para perceber se o dizia pelo facto de a sinistra criatura ainda mandar ou estar à beira de passar à História como um dos seus mais detestados criminosos.
Mas o que logo decidimos foi a escusa ao cumprimento dessa ordem repressiva. E foi assim que, depois da meia-noite, lá saímos, escada de portaló, abaixo para seguir até à vila ali bem próxima. Para encontrar estradas e ruas vazias à exceção de alguns gatos vadios a procurarem sustento nos ratos encontrados por entre os contentores ou nos montes de lixo.
Chegados às primeiras casas não foi difícil encontrar o primeiro bar cheio de gente jovem a tilintar copos e a multiplicar-se em conversas babélicas. Porque não tinham sido só os portugueses a desrespeitar os ditames da repressão: estavam ali filipinos, indianos, europeus e gente de tantas nacionalidades quantas as dos navios ali atracados.
Essa imagem dava a ideia, depois desmentida dias depois em Valparaíso, de presenciarmos uma ditadura já em ritmo de faz de conta. A ditar ordens, mas já incapaz de as fazer cumprir.
Na manhã seguinte, quando nos afastámos da baía em direção ao mar alto, já estávamos convencidos de ter visto o país de Neruda a dar a volta aos tempos infames, que vivera nos quinze anos anteriores. E no camarote soavam, de entre as canções dos Quilalapayun compradas na véspera, uma que tanto nos dizia respeito: el Pueblo unido jamás sera vencido!

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