terça-feira, 25 de junho de 2013

GRANTA: «Espelho da Água» de Rui Cardoso Martins

Como é que tantos eus podem ser sugestionados pelo breve vislumbre de um cadáver a passar à beira de um cacilheiro?
É esse o tema do conto de Rui Cardoso Martins inserido no primeiro volume da edição portuguesa da revista «Granta».
Muito embora os marinheiros da embarcação não tenham conseguido apanhar o corpo levado pela corrente no sentido da foz, os duzentos passageiros da viagem entre as duas margens do Tejo dividem-se entre os que se congratulam por não serem eles quem está nessa definitiva condição, e os que se angustiam com o pensamento de nela virem a cair proximamente.
O indiano Kantilal, que vende gatos elétricos na Praça do Comércio, sonha com a possibilidade de, um dia, conseguir que o seu corpo descesse Ganges abaixo de acordo com a sua tradição cultural. 
Maria Rosa ainda rumina a mais recente desilusão amorosa, ciente de constituir dano tão irreparável quanto o da válvula que abre e fecha mal à saída do seu esgotado coração.
Há também Filomena, a empregada da limpeza de uma instituição bancária, tão preocupada com o filho, que já tem encarcerado no Estabelecimento Prisional de Lisboa, como com o mais novo, que se arrisca a seguir-lhe os passos muito em breve.
O caso da florista Adelaide é, igualmente, problemático: não só o negócio está péssimo como deu em engravidar de uma ligação ocasional com um amante, que dela logo se desinteressara, atribuindo a responsabilidade pelo futuro filho ao namorado de anos. Ora este, se já bebe a horas e a desoras pelos mais variados motivos, muito maior razão encontra para comemorar a notícia que ela lhe traz.
E há, enfim, o caso do senhor Fonseca que de proprietário de restaurante durante décadas, se vira sem negócio e na iminência de perder a casa em que habita. Daí que fique aliviado quando se teta um cancro do fígado em estado avançado, por lhe poupar o sofrimento adicional de morrer debaixo de um viaduto ou numa valeta.
Em poucas páginas, Rui Cardoso Martins demonstra como aprimorou a arte de testemunhar o mundo à sua volta descoberto em tempos, quando assinava as crónicas de tribunal para o jornal «Público».
Está sempre presente o tema da morte  - o que não surpreende tendo em conta a biografia do autor - mas também o retrato de uma sociedade portuguesa a contas com uma crise de incomensurável dimensão.
Se existem os que desistem pela via do suicídio, sobram os conformados, capazes até de receber a pior das notícias com o alívio de escaparem a desdita ainda maior do que aquela para que pareciam empurrados. Mas muitas outras especificidades do comportamento dos portugueses vêm ao de cima: a vontade de subverter regras por parte dos marinheiros dispostos a interromper a viagem para pescarem um choco; o rancor silenciado contra os engenheiros e os administradores, que querem impor regras demasiado rígidas; a importância conferida às diferenças hierárquicas, mesmo quando se está no fundo da escala social ou a desresponsabilização masculina perante as gravidezes semeadas aqui ou além.
Num número de grande qualidade, como o é esta primeira edição da Granta, o conto de Rui Cardoso Martins é um dos mais interessantes...


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