terça-feira, 11 de junho de 2013

LIVRO: «O Caso de Charles Dexter Ward» de H.P. Lovecraft

Howard  Phillips Lovecraft era um homem profundamente conservador e a forma como abordou o género fantástico coincidia com uma gnose em que, na perspetiva bíblica; o mal e o bem estariam em permanente conflito com a balança a pender frequentemente para o lado satânico como consequência da insensatez dos comportamentos humanos. E, no entanto, a história com uma ideologia intrínseca tão retrógrada acaba por constituir uma belíssima metáfora sobre os tempos presentes, porque o percurso de aprendiz de feiticeiro de Charles Dexter Ward é a de um homem apaixonado pelo lado satânico da realidade e enlouquecido por ela. Como se fosse uma réplica dos gaspares e dos passos endoidecidos pela austeridade e por ela decididos a criar um cenário quase apocalítico. Incapazes de dele conseguirem recuar...
O romance é um dos mais longos de Lovecraft, que sempre manifestou a sua preferência por textos mais curtos, no limiar entre o conto e a novela.
Escrito em 1927, só seria publicado postumamente em 1941 nas “Weird Tales», sendo desde então considerado um dos títulos maiores da obra do autor.
A história passa-se em Providence em 1928, quando Charles Dexter Ward desaparece do hospital psiquiátrico onde estava internado. O narrador, Marinus Willet, era o médico da família Ward e evoca a progressiva transformação do jovem enquanto entusiasmado investigador da arqueologia e da genealogia até cair na demência.
É assim que regressa ao inverno de 1919-1920, quando descobre as suas semelhanças físicas com um antepassado chamado Joseph Curwen. Segundo a lenda, este fugira de Salem em 1692, quando aí tinham ocorrido as perseguições contra as bruxas, devido á impopularidade das suas experiências químicas e alquímicas.
Radicado em Providence como armador de vários navios, depressa concitara a atenção da população local. É que, além de não envelhecer, outras suspeitas surgiriam a seu respeito devido ao notório tráfico de escravos a que se entregava, aos gritos lancinantes ouvidos na sua quinta, às luzes estranhas ali acesas e aos inexplicados desaparecimentos entre os marinheiros dos seus navios.
Consciente da desconfiança crescente, que suscitava à sua volta, Curwen decidira-se a casar com uma jovem da melhor sociedade de Providence, como forma de nela melhor se integrar. Eliza Tillinghast era a noiva do imediato Ezra Weeden, mas as dívidas do pai para com o novo pretendente não lhe deixava margem para recusar a proposta deste último.
Nos anos seguintes Curwen esforçou-se por ter uma vida social quase normal com convites para jantar aos notáveis da cidade, com a encomenda de um retrato seu ao celebre pintor Cosmo Alexander e protagonizando ações de mecenato.
Mas Ezra Weeden não se conformara com a perda da noiva e decidira-se a espiar todos os comportamentos do seu proclamado inimigo. E, ao descobrir evidências das atividades de feitiçaria do rival, decidira informar muitos dos seus concidadãos, logo por ele comprometidos numa conjura para o eliminar. A 12 de abril de 1771, Curwen seria assassinado na sua propriedade, mesmo que á custa de oito vítimas do seu lado.
Foi sobre esse trisavô que Charles Ward começou a investigar reunindo todos os documentos e objetos, que lhe tinham pertencido. Na antiga residência de Curwen descobrira o famoso retrato de Alexander, que se encarregara de restaurar, mas sobretudo descobrira um caderno de notas num esconderijo, que tratara de decifrar nos meses seguintes, para o que realizaria diversas viagens a Salém ou à Europa. Ao regressar procurara a sepultura de Curwen, devolvendo-o á vida graças à utilização dos seus “sais essenciais”.
O ressuscitado e Charles instalaram-se então numa cabana situada exatamente aonde ficara a propriedade de Curwen em Pawtuxet. Idênticos quais duas gotas de água, só os distinguia o disfarce do doravante chamado doutor Allen com um chapéu e uma barba.
Cada vez mais atemorizado com os efeitos da caixa de Pandora que abrira inadvertidamente, Charles chega a pedir socorro ao doutor Willet, mas Curwen desembaraça-se do incómodo cúmplice, assumindo as duas personalidades: Charles e Allen.
Conscientes do perigo em que a própria civilização se encontrava, Willet e o pai de Charles decidem agir, infiltrando-se nos subterrâneos da casa de Pawtuxet e aí descobrindo acidentalmente espíritos antigos inimigos do próprio Curwen.
Aprisionado e encerrado num asilo psiquiátrico, o suposto Charles tenta convocar um encantamento capaz de garantir-lhe a libertação, mas com outra fórmula de sinal oposto, Willet consegue-o reduzir finalmente a cinzas.
O livro insere-se no Mito de Cthulhu inventado pelo escritor e em que vemos o mundo real constantemente ameaçado por forças obscuras e sobre-humanas, tão poderosas quanto antigas e decididas a retomar o antigo domínio sobre a humanidade. E temos assim mais uma metáfora óbvia: a de subsistir uma luta de classes entre as que se pretendem libertar e as que a querem aperrear na sua inquestionada exploração...


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