sexta-feira, 27 de setembro de 2013

LITERATURA: «O Homem em Queda» e a imprevisibilidade como modo de vida

No momento em que vi o segundo avião dirigir-se para a segunda torre do World Trade Center, concluí tratar-se de algo muito distinto do acidente, que até então servia de explicação para as imagens surpreendentes transmitidas a partir de Nova Iorque. E soube que o mundo iria mudar bastante a partir de então, a começar pela perda da inocente sensação de vivermos seguros em sociedades de abundância e distantes dos cenários de miséria do Terceiro Mundo, que tenderíamos a considerar mais propícios para as tragédias acidentais ou provocadas.
«O Homem em Queda» de Don DeLillo aborda essa sensação de estranheza de, ora se estar confiante e tranquilo num mundo previsível e abastado, ora se ver mergulhado na maior das inseguranças depois de se sobreviver a uma catástrofe suscitada pela mais irracional das explicações. Caleidoscópico, como nos habituámos a constatar nos seus romances mais conhecidos, este romance constitui uma estimulante reflexão sobre a precariedade das certezas, quando tudo à nossa volta tende para a mais descontrolada das volubilidades.
Através de Keith passamos pelas várias fases na vida de um sobrevivente desse histórico 11 de setembro: a reação hipnótica de fuga pelas escadas de emergência, acompanhando outros homens e mulheres em estado de choque, mas impelidos para a salvação pelas apinhadas escadas de emergência. A confusão gerada pela ascensão atabalhoada dos bombeiros e do pessoal da manutenção, que não se imaginavam a percorrer o breve hiato entre a vida e a morte. A caminhada pelas ruas mergulhadas na escuridão pelas cinzas, que parecem apossar-se de um apreciável diâmetro em torno do que virá a ser o Ground Zero. A consciência de gente a chorar, a correr, a ficar estática, a caminhar em sentido contrário como que atraída por incrível vórtice. Tanto mais que começam a precipitar-se corpos a partir dos andares superiores, aqueles que tinham o acesso cortado para a salvação pelos incêndios resultantes dos embates dos aviões. O abrigo encontrado no sítio de onde se julgara ter saído para sempre, em rutura de afetos, e que constitui afinal a única boia de salvação a que se agarrar. As semanas de estupefação em que tudo parece instável, quer nos afetos, quer nas direções a tomar para devolver alguma sensação de normalidade ao que se transformara numa sucessão de dias de indesejada excecionalidade.
Mas o livro vai para além desse personagem, porque acompanha igualmente o estado de alma de um dos terroristas do mesmo comando de Mohamed Atta, desde os treinos na escola de aviação na Florida até ao derradeiro voo para a morte. Ou as inseguranças de Lianne, a ex-mulher de Keith, que o recebera de volta sem lhe atirar à cara todo o sofrimento por uma rutura cuja iniciativa se devera exclusivamente a ele, e inquietando-se com a evolução para a senilidade definitiva de alguns dos pacientes de alzheimer com quem trabalhava no seu curso de escrita criativa. Como se essa forma de esquecimento refletisse o alheamento de quantos tinham decidido esquecer o terror daquelas horas, adotando comportamentos mais ditados pelas rotinas do que pelos pensamentos.
Outros personagens nem sequer têm o nome a identifica-los, como é o caso do performer, que suscita reações contraditórias com as suas acrobacias arriscadas pelas quais procura recriar o efeito visual dos que se haviam precipitado das Torres Gémeas antes delas ruírem.
E que a catarse de Keith signifique a transição do seu anterior ofício convencional e previsível para a condição de jogador profissional de poker dependente da aleatoriedade das cartas, condiz bem com um romance sobre a passagem de um mundo mais ou menos cristalizado num conjunto restrito de dogmas  para outro mais dependente das muitas variáveis, que ninguém parece verdadeiramente controlar...


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