sábado, 15 de março de 2014

FILME: «Segredos de Mulheres» de Ingmar Bergman (1952)

O sucesso do ciclo dedicado ao realizador sueco no Nimas veio demonstrar que os seus filmes mantêm-se extremamente atuais e merecedores de uma abordagem aprofundada.
Embora ainda faltem quatro anos para o centenário do seu nascimento antecipamos aqui essa celebração com uma revisita aprofundada à sua obra cinematográfica.
A primeira proposta é a de um filme pouco conhecido e que até se diferencia bastante do tipo de estrutura por ele habitualmente concebida. Mas, como depressa constataremos, mesmo quando esses desvios ao padrão bergmaniano parecem evidentes, sobra sempre a evidência de se manterem os temas, que sempre o interessaram… E que têm no casal o fulcro da sua atenção...

Uma casa de férias à beira de um lago. Algumas mulheres passam juntas o fim de semana à espera que os maridos respetivos, quatro irmãos, se lhes venham juntar.
Elas estão esperançosas ou tensas, consoante o estado das respetivas relações conjugais e a espera incita-as a recordar, uma a uma, o momento em que algo afetivo mudou para elas.
Trata-se de uma filme diferente do que Bergman nos habituou com a história a dividir-se em três episódios principais, mas está neles a sempiterna questão do casal como espaço de luta pelo poder, de revelação e de compromisso típica da obra do realizador, Ainda assim, ao mesmo tempo explora as diversas tonalidades das histórias, quase as traduzindo em géneros distintos do ponto de vista literário ou cinematográfico.
Por exemplo a história de Rakel e Eugen é um drama clássico de adultério burguês, que nos faz pensar em Stendhal ou em Flaubert, enquanto o segmento consagrado a Marta e a Martin é quase inteiramente mudo, manifestamente influenciado pelo expressionismo alemão ou pelo surrealismo. E o episódio dedicado a Karin e a Fredrik revela-se lubitschiano no seu tratamento de uma  comédia de repetição de casamento.

As mulheres aqui reunidas só se relacionam por terem entrado na influente família Lobelius. É que, sem
esse traço em comum, nada as tenderia a aproximar umas das outras, tão dissemelhantes se mostram entre si. Não admira que passem pelo filme vários comentários depreciativos de umas em relação às outras. Elas até parecem só conhecerem-se superficialmente por só conviverem em contextos artificiais.
A espera deixa-as a contas com as respetivas inseguranças, pelo que decidem adotar como paliativo a verbalização dos seus problemas conjugais, que toma a forma de um jogo do tipo do retrato chinês focalizado em torno da questão: «em que momento terão sabido, que iriam iniciar uma relação com o conjugue?» Porventura, na esperança de suscitarem por essa via uma espécie de solidariedade feminina a partir da partilha das respetivas experiências.
Das quatro esposas presentes só Annette (Aino Taube), casada com Paul (Håkan Westergren) evita a questão, contentando-se em explicar às outras o quão estranhos se foram tornando um para o outro, já nada os ligando. Não havendo, pois, qualquer história para contar.
Pode-se atribuir a sua reserva a uma questão geracional: de todas ela é a mais velha, com o filho Hendrik a já viver na idade das primeiras paixões. Por isso evoca o passado distante em que as esposas fechavam a vida íntima no guarda-roupa e impediam-se de procurar a felicidade fora do casamento.
Eugen e Rakel: a alienação respeitável
Rakel (Anita Björk) relata o sucedido dois anos atrás nessa mesma casa de férias. Esse regresso ao passado mostra-no-la desocupada, bocejando de tédio no salão ao nascer do dia, na pose da mulher para quem a preguiça é um modo de estar.
As informações depois obtidas sobre o seu Eugen (Karl-Arne Holmsten) caracterizam-no como um diletante sonhador, sempre dependente da fortuna familiar enquanto boia de salvação para a sua completa ausência de sentido das realidades.
Surge então Kaj (Jarl Kulle, um dos habituais intérpretes de sedutores no cinema de Bergman), que é um amigo de infância do casal e que terá tido em tempos um namorico com Rakel, ainda antes dela casar.
Se começa por estar intrigado com o convite de Rakel para a visitar na ausência de Eugen, a vestimenta dela quando o recebe (de fato de banho) transmite-lhe a mensagem subliminar, que fundamenta a imediata decisão de a possuir.
Absolutamente incapaz de assumir a intenção de enganar o marido, Rakel finge acantonar-se a sólidos princípios morais, já ultrapassados no passado, sem que a mole complacência de Eugen lhe tenha propiciado o prazer perverso do arrependimento.
Depois, a sua linha de defesa, já ambígua, deixa transparecer a sua vulnerabilidade ainda mais evidente quando confessa a insatisfação propiciada pelas suas relações sexuais com o marido, razão para a frustração, que a impelem para o adultério.
Na pequena cabana de banhos para onde levou Kaj ela finge sentir nojo pelo contacto de um peixe contra as suas pernas, quando afinal o seu rosto manifesta a excitação. Este minúsculo incidente reforça ainda mais a impressão de a considerarmos vítima de uma espécie de esquizofrenia, dividida entre o reconhecimento dos seus desejos e a ânsia em ter uma vida virtuosa, em conformidade com a imagem de mulher respeitável.
Quando cede a Kaj (capitulação provocada por ela quando se queixa de uma picada de inseto, que ele procura tratar) o beijo articula-se com a imagem da superfície ensolarada do lago. Ficamos, assim, com a sensação de ter no ato sexual uma forma de fuga de Rakel a ela própria.
Evasão sem futuro, porque não tardaremos a ver Rakel furiosa no salão, enquanto Eugen e Kai falam divertidamente. A necessidade de fustigar e ser punida pelos erros empurra-a para a confrontação , levando-a a confessar o adultério ao marido perante o mudo amante (que , de costas, fica a olhar para a paisagem).
Eugen fica abatido não tanto pelo sexo em si, mas porque adivinha o papel de vítima assumido por Rakel com as confidências impúdicas sobre eles enquanto casal. Mais do que a dor suscitada pelo amor traído fica-lhe a provocada pelo orgulho ferido.
Rakel tenta recuperar o ascendente sobre ele lembrando-lhe o quanto tem sempre dela precisado. Num derradeiro gesto de revolta, Eugen fecha-se no abrigo para os barcos com a espingarda com que chega a pensar suicidar-se.
Será Paul, o irmão dele, quem dali o faz sair através de uma mentira piedosa («O pior não é ter sido enganado, mas de ficar sozinho. Não sei se é verdade, mas que soa bem, soa!»).
O episódio conclui-se com Rakel disposta a tomar conta de Eugen como se ele fosse uma criança. Será que o problema de ambos é a esterilidade, mais do que a afinidade sexual?.  Atingiu-se, pois, uma espécie de equilíbrio, mesmo que à custa da dolorosa derrota de Eugen.

Martin e Marta: o sonho romântico
Passamos então à confissão de Marta  (Maj-Britt Nilsson) às cunhadas e recuamos alguns anos: grávida de oito meses, sozinha em casa dos pais, quando as primeiras dores a levam a recorrer ao hospital.  Isolada na sala de partos ela recorda o encontro com o pai do seu filho prestes a nascer. Trata-se de Martin (Birger Malmsten)
Na altura ela era uma rapariga alegre sempre disposta a andar na farra, enquanto ele era um pintor, que vivia no mesmo hotel parisiense. Quando a vira nos braços de outro homem num cabaré, decidira seduzi-la.
A corte será lenta e sinuosa, encenada pelas mãos do jovem, únicos elementos a ressaltarem da penumbra: fazem deslizar um bilhete debaixo da porta, um copo de vinho (moderno filtro amoroso). O jogo de pistas (sequência onírica e sensual) conclui-se com as mãos de Martin a flutuarem em frente a Marta no corredor que separa os respetivos quartos.
Ele leva-a para o seu quarto e para uma noite amorosa onde cada um deles tem prazer a ver-se no espelho com expressão tão apaixonada.
Segue-se uma montagem, que mostra o idílio do casal numa primavera eterna e descontraída. Que é interrompida pelas contrações de Marta. Que está encantada com a gravidez e se junta a Martin em casa dos pais dele, onde dá com dois dos irmãos, Paul e Fredrik, a instá-lo a uma vida mais de acordo com os padrões dos Lobelius: casamento e emprego na empresa da família.
Capaz de grandes gestos romanescos e supérfluos, Martin começa por recusar a oferta dos irmãos mas, mais tarde, a sós com Marta, compreende as vantagens de obedecer em vez de sofrer as consequências de ficar sem a mesada que, até então, lhe era atribuída. Desconhecendo que Marta já tem no ventre o filho dele, está disposto a também cortar os laços com ela.
Reencontramos Marta no hospital, quase a dar à luz. A anestesia mergulha-a em pesadelos (uma estátua de terracota desventrada) e de desvarios idílicos (a felicidade com Martin e o bebé, novamente, fundidos na imagem da superfície ensolarada do lago.
Regressamos então ao presente, à reunião fortuita das quatro mulheres. Marta resignara-se a desposar Martin, apesar dos sarcasmos da irmã Maj, que via nele um cobarde. Sem que cheguemos a compreender como eles se tinham reaproximado depois dela ter anunciado a sua recusa em desposá-lo, muito embora fique implícita pressão das duas famílias nesse sentido. 
A realidade acabara por se sobrepor aos seus ideais de jovem solteira.

Fredrik e Karin: o erotismo do poder
Chegamos a um episódio mais leve, contado na cozinha, para onde as quatro mulheres se mudaram para beberem um café.
Na altura em que Marta estava grávida, Karin (Eva Dahlbeck) e Fredrik (Gunnar Björnstrand, que personificava o típico burguês nos filme sde Bergman) regressam a casa.
O curto trajeto permite divisar-lhes as personalidades: Fredrik gaba-se do sucesso familiar, e sobretudo de si mesmo em detrimento dos irmãos (Eugen seria o imprestável, Paul o gentil incompetente). Embora pareça empertigado e, ao mesmo tempo, possessivo com ela (que namorisca Martin), mostra-se sempre preocupado com a sua imagem e a da empresa a que se dedica quase por completo. Por seu lado Karin dedica-se a espicaçar o marido de forma a salvaguardar-lhe o interesse nela. Delicia-se por isso com o ciúme dele pelo sucesso do decote do seu vestido.
A avaria no elevador, que os deveria levar ao seu apartamento faz cair a máscara de Fredrik: o chapéu fica esmagado e ele vê-se obrigado a gritar de forma pouco digna  para pedir socorro. Compõe então uma pantomina da dignidade ferida digna de um Cary Grant (o rosto impassível perante a incapacidade de fazer passar o seu grande corpo pelo espaço confinado) sob o olhar trocista da mulher.
Privados de todos os atributos da sua vida luxuosa são obrigados a partilhar um bocado de chocolate esquecido num saco de mão e de se dedicarem a um jogo da verdade em que ele tenta levá-la a confessar as infidelidades só existentes na sua imaginação doentia. Ela finge entrar nessa onda, provocando-o com o medo do que se possa dizer dessas supostas infidelidades se vierem a ser conhecidas. O que leva Fredrik a mostrar-se terno, propondo-lhe que o acompanhe numa viagem de negócios. Desta feita o episódio não se conclui com a passagem para a imagem do lago ensolarado o que deixa pressupor que qualquer miragem carnal ou amorosa fica ausente desta história.
Na manhã seguinte Karin e Fredrik acabam por sair do elevador emergindo da desordem eloquente das suas roupas reajustadas à pressa para se dedicarem a um dia de prazer em casa… mas o trabalho logo se encarrega de cobrar o seu tributo. Karin volta  à condição de mero apêndice do conceituado esposo. Algo que nunca poderá contrariar, porque ele também não lhe dá espaço suficiente para o reivindicar.
Epílogo: Henrik e Maj, o casal com futuro
Em simultaneidade com as histórias das três mulheres esboçou-se a da jovem Maj (Gerd Andersson), irmã de Marta e noiva de Henrik (Björn Bjelfvenstam) o filho de Paul e de Annette.
Um pequeno prelúdio antes do relato de Karin mostra-os a planear a fuga a fim de evitar a entrada forçada do rapaz na firma do pai e dos tios. Eles esquivar-se-ão, assim, à festa em que todos os casais fingem o prazer de estarem juntos.
As histórias de desilusão anteriormente relatadas pelas mulheres e os asizados propósitos da mais velha intimidaram Maj, que exige uma nova confissão amorosa a Hendrik antes de partirem. Marta e Paul vêem-nos sair de barco pelo lago (novamente o símbolo de uma quimera amorosa feita de luminosa superfície e traiçoeiras profundezas) com ele a explicar placidamente que vale a pena deixá-los aproveitar enquanto podem, porque não tardarão a conhecer as primeiras desilusões, que os trarão de volta a casa, à família.
Nas suas memórias Bergman explica que quem lhe deu a ideia para o filme terá sido Grut, a sua terceira esposa, que lhe contara como estivera inserida num clã familiar no seu casamento anterior e passara algumas ocasiões numa grande mansão familiar da Jutlândia.
«Gun contou-me que, um dia, as mulheres do clã haviam ficado sozinhas depois do jantar e tinham começado a falar abertamente dos respetivos casamentos e dos seus amores. Essa revelação pareceu-me uma bela ideia para um filme: três intrigas dentro do mesmo enquadramento.»

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