quarta-feira, 3 de setembro de 2014

As tecnologias da socialização

Sobre o fenómeno dos meets - que ainda se mantiveram na ordem do dia com a condenação de dois dos jovens transformados em arguidos na sequência dos incidentes do Centro Comercial Vasco da Gama - a abordagem jornalística mais interessante foi a subscrita por Daniel Oliveira no «Eixo do Mal» da SIC Notícias e no «Expresso» de sábado, onde analisou o fenómeno como resultado de uma mudança civilizacional cujos efeitos ainda estamos a descobrir: “Hoje graças à internet e às redes sociais, a socialização faz-se a tempo inteiro. Nunca se está só. A recusa da invisibilidade, a incapacidade de parar de comunicar e, ligada às duas coisas,  a morte desse luxo que é a privacidade é a parte mais assustadora desta revolução cultural.
Parece que as coisas não são realmente vividas se não forem partilhadas. São mais individualistas do que nunca, mas perdemos o direito a ser solitários.”
De facto é hoje impensável olhar para os adolescentes e não os vermos com os gadgets, que facilitam o estado de contacto permanente com a tribo em que se inserem. E é paradoxal como, momentaneamente ausente o grande sentido transformador das solidariedades coletivas, o suposto individualismo que o inviabiliza, é diluído numa espécie de alienação virtual em que sobra a ilusão de se contar com muitos amigos.
É uma geração, que desconhece o valor do silêncio, da leitura sem pressas e da reflexão solitária. Acreditando na importância do eu, restringe-o ao papel hedonista de um utilizador dos produtos da sociedade de consumo, mas sem ter os meios para os alcançar à medida dos seus desejos.
A frustração depressa advirá. Porque o horizonte é feito de desemprego ou de empregos precários e mal pagos. E, nessa altura, evaporada a adolescência, fica-se condenado ao isolamento de que se quis fugir até então. A menos que se continuem a procurar os antigos membros da tribo e se os vá descobrindo, com a mesma amargura e desencanto de que se almejaria fugir.
No seu texto Daniel Oliveira restringe os seus receios a uma vertente limitada do alcance deste fenómeno, embora excelentemente descrita: “A única coisa que me assusta? Que haja uma geração inteira que esteja a crescer sem conhecer o prazer de estar absolutamente só, sem nada para dizer e sem ninguém para ouvir. De sofrer sem plateia, ser feliz sem aplauso, engatar sem registo. Crescer sem rasto. É uma mudança radical esta ilusão de estar sempre acompanhado.”
Eu acrescentaria que se trata de algo que não poderá perdurar. Se novas tecnologias trazem sempre outros modos de exploração de mão-de-obra e mudança profunda de valores, as que agora geram os meets ainda estão no estado primitivo das consequências, que comportarão.
Enquanto pessimistas na razão, poderemos sempre temer que cresçam as depressões coletivas e o sucesso imparável da venda de mercadorias de grande consumo destinadas a prender as pessoas à obsessão pela sua posse e distraindo-as do que seria o seu interesse numa sociedade diferente e mais justa.
Mas, otimistas na vontade, podemos sempre reconhecer que, com a pauperização contínua da classe média vão minguando os compradores destas ferramentas. Por isso mesmo do desajustamento entre os desejos e a sua satisfação, crescerão as condições para que possa regressar essa ambição coletiva por uma sociedade menos iníqua.
Quem se ilude a pensar que as coisas (quer dizer esta sociedade baseada na exploração do homem pelo homem!) continuarão a ser como arrisca-se a passar por grandes e futuras surpresas...

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