domingo, 2 de novembro de 2014

China: a política do filho único

Na China designam-nos por “hehaizi”, que significa literalmente “filhos escuros”, escondidos. Estão proibidos de ir à escola, de procurarem um emprego, de abrirem uma conta bancária e até de apanharem um comboio.
É-lhes apontado um crime: terem nascido no país da política do filho único. Trinta e cinco anos depois da implementação da legislação sobre o controle de nascimentos, a proibição tende a aligeirar-se com um número crescente de exceções, mas a China continua a não perdoar aos que “nascem a mais”. Que já chegam a ser 13 milhões e constituem um tema tabu.
Que vida espera estas crianças, que não tinham o direito de nascer? Que recursos lhes resta? Porque continuam ostracizados da sociedade chinesa apesar das mudanças entretanto verificadas no seu perfil demográfico?
Depois de uma longa investigação, a equipa de reportagem composta por Marjolaine Grappe, Christophe Barreyre e Emmanuel Charieras da agência Orientexpress, a trabalharem para o canal ARTE, chegaram à fala com alguns desses “heihaizi”, que vivem clandestinamente em Pequim., em Shenzhen ou em aldeias recuadas dos campos chineses onde persiste o controle do planeamento familiar para impedir os nascimentos ilegais e a chantagem sobre as famílias “demasiado numerosas”.
Quando, em 1950, a República Popular da China estava a implantar-se, Mao Zedong aconselhou as mulheres a terem tantos filhos quantos os possíveis. As mais férteis até recebiam o título de «Mamã de honra».
Essa política natalista provocou um significativo crescimento da população chinesa em apenas vinte anos, passando de 550 milhões de habitantes em 1950 para 890 em 1973.
Em 1979, perante tal explosão demográfica, Deng Xiaoping faz uma inversão radical do discurso oficial optando pelo do filho único. No mesmo sentido a Constituição chinesa impôs idades mínimas a quem se pretendesse casar: 22 anos para os homens e 20 para as mulheres.
Em 1982 a China alcançou os mil milhões de habitantes, mas, dois anos depois, começa a flexibilizar-se a legislação para quem vive no campo: se o primeiro filho fosse uma rapariga, o casal era autorizado a tentar um segundo filho, quando o primeiro chegasse aos cinco anos.. Anos depois, em certas regiões um casal constituído por dois filhos únicos pôde passar a ter dois filhos.
 Em 1995, o Estado indica que “o planeamento familiar deve servir, e estar subordinado, à tarefa central do desenvolvimento económico”. Segundo a política das “Quatro Modernizações”, que marcou formalmente o início da era das “reformas”, a limitação drástica do número de filhos permitiria priorizar os magros recursos do Estado para investimentos produtivos.
Em 2002 institui-se a regra de permitir o nascimento legal do segundo filho mediante o pagamento de uma verba de 510 euros, ou seja, mais do que quatro vezes a média dos ordenados nas cidades. Em caso de nascimentos ilegais eram previstas multas e o impedimento de acesso à caderneta que dá direito à gratuitidade dos transportes e da escolaridade.
Em 2012, enquanto o governo anuncia ter impedido o nascimento de mais de 300 milhões de nascimentos desde 1979, o caso de Feng Jianmei provoca séria comoção coletiva. Raptada por cinco funcionários do departamento do planeamento familiar da província de Shaanxi, a jovem chinesa é forçada a abortar aos sete meses de gestação por não poder pagar a multa de 4900 euros reclamada pela administração pelo seu segundo filho. O escândalo rebenta na Internet, quando o marido publica imagens impressionantes dela, estendida na cama com o seu feto.
As autoridades limitam-se a lembrar que as mulheres na situação de Feng Jianmei deveriam ser “convencidas a abortar” e não “forçadas” a tal.
Para abafar o caso três responsáveis de Zhenping são “suspensos”, mas o caso é apenas um entre milhares, já que 55% das mulheres chinesas terão abortado pelo menos uma vez.
As esterilizações e os abortos forçados ainda são correntes, nomeadamente na etnia tibetana. As  “minorias étnicas” que não cheguem a  ser 10 milhões de pessoas e os casais mistos estão teoricamente isentos de tal proibição, mas persistem restrições a abusos a nível local.
No ano passado a legislação foi mudada, permitindo duas crianças a todos os casais constituídos pelo menos por um filho único. O Partido Comunista decidiu generalizar essa medida experimentada durante alguns anos a todo o país. É que a população em idade de trabalhar diminuiu em 3,45 milhões de pessoas, quando os mais velhos de 60 anos já são 200 milhões e serão 400 em 2035, ou seja 25% da população. Anuncia-se, pois, o fim do período da fasta demografia.
Uma vez aplicada essa reforma em todo o país, a população chinesa poderá aumentar em um milhão de pessoas por ano a partir de 2015, segundo um perito citado pela Renmin Wang.  Segundo as estimativas dos responsáveis nacionais do planeamento familiar, de entre os 15 a 20 milhões de casais seduzidos pela política de maior flexibilidade nessa matéria, 50 a 60% desejariam ter um segundo filho.
O facto de existirem pessoas próximas do Partido, que não respeitam as regras - como é o caso do realizador Zhang Yimou, pai de sete filhos, que o obrigariam ao pagamento de uma multa de 20 milhões de euros ao Estado! -  não ajuda nada a apaziguar a sensação de grande injustiça social consciencializada por muitas famílias chinesas.

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