segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Os noventa anos de um político de exceção

O que mais admiro em Mário Soares é a coragem. E essa foi a característica, que primeiro me foi dele transmitida quando, jovem adolescente, me comecei a interessar pela política.
Estava então nos inícios dos anos 70 e a suposta primavera marcelista já comprovara não passar de uma mera variante do longo inverno salazarista.
Em Almada foi o Padre Augusto Sobral - falecido já lá vão seis anos - quem começou a falar a alguns dos seus alunos mais próximos dos seus ideais socialistas e de alguns dos principais opositores que, no exílio, procuravam mudar o rumo dos acontecimentos. Numa altura em que se nos colocava a questão de preparar a partida para o exílio ou arriscar uma incorporação para as guerras em África, Mário Soares já era um dos que personalizava a esperança de sermos realistas pedindo o impossível.
Em 28 de abril de 1974 não foi propositadamente para o receber, que me desloquei à Estação de Santa Apolónia, já que vinha no mesmo comboio o meu futuro cunhado. Mas foi contagiante o ambiente dos que ali esperavam a chegada do líder dos socialistas,.
Nessa multidão recordo sobretudo a presença do escritor Urbano Tavares Rodrigues, que era dos mais pródigos nos abraços aos companheiros com quem partilhava a recém conquista da Liberdade.
O primeiro comício da minha vida foi o que ali mesmo vivi com Mário Soares a discursar de uma das janelas do primeiro andar do edifício da estação. A praça estava repleta de quem ali estava presente para o ouvir e dele colher a esperança de tempos bem melhores do que os sobrevividos durante a ditadura..
Passados quarenta anos já houve alturas em que concordei e discordei muitas vezes com as suas decisões: durante anos achei-o demasiado de direita para o meu gosto, e até nem fui grande entusiasta na opção pela entrada na então Comunidade Económica Europeia. Mas desde essa data nada tem havido que dele não subscreva.  E comparativamente ao presidente que, como diria Carlos do Carmo, temos o grande azar de suportar, só podemos pensar que são tantas as qualidades de Mário Soares quantos os defeitos de cavaco: à bonomia do agora nonagenário corresponde a mesquinhez do filho do gasolineiro de Boliqueime. Onde um constitui exemplo de irreverência, é o outro um bolorento reacionário. Onde um continua com os olhos carregados de futuro, vemos o inefável sucessor já mais mumificado do que os exemplares descobertos no Vale dos Reis.
A propósito da comemoração de mais um aniversário li muitas histórias de quem o tem conhecido. E uma das que mais me divertiu foi a de Miguel de Sousa Tavares no «Público», quando conta da vez que o acompanhou numa viagem de Estado a Nova Iorque para ele discursar na Assembleia Geral da ONU.
Pela gargalhada que me provocou reproduzo-a aqui tal e qual a revelou o jornalista: “em plena hora de ponta, a comitiva pára. O dr. Soares sai do carro e põe-se se a caminhar a pé, o que é típico nele. Entra numa livraria, depois noutra loja. A segurança americana ficou histérica.
Atravessaram os carros, fecharam a rua, parecia um filme policial. Um dos agentes dizia que “o vosso Presidente é maluco, é maluco”.
Um pandemónio enorme. O dr. Soares olha para aquilo e diz-me: “oh Miguel, veja lá o pandemónio que estes gajos montaram”.
Nem se apercebeu que foi ele que montou o pandemónio.”
Embora Miguel de Sousa Tavares não o refira, Mário Soares deve ter rido de si mesmo, quando compreendeu essa mesma responsabilidade no que sucedera.
É isso mesmo que os portugueses necessitam: em vez de um pau seco em forma de presidente, carecem de quem os represente com as virtudes e defeitos de quem é humano e orgulha-se de o ser, sendo até capaz de rir de si próprio sempre que tal se justificar! 

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