segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

IDEIAS: Como as democracias justificam o injustificável (2)

O tema da tortura continua na ordem do dia. Em primeiro lugar, porque quem mais recentemente o teorizou em Portugal está agora preso em Évora sujeito à prepotência de certos poderes, que anteriormente criticara. Depois, graças ao elucidativo relatório do Senado norte-americano sobre as práticas seguidas pela CIA e outras instituições norte-americanas ligadas ao combate contra o terrorismo.
Os acontecimentos recentes ocorridos entre nós perpetrados por alguns magistrados, e os anteriores, verificados nos EUA na sequência dos atentados do 11 de setembro, demonstram bem como as democracias perdem facilmente a legitimidade moral ao incorrerem em práticas, que os seus princípios fundamentais condenam.
Um dos exemplos mais perversos de como se andou a manipular a opinião publica mundial para a aceitabilidade da tortura enquanto método de interrogatório de presos políticos - mesmo quando ligados a organizações terroristas! -aconteceu com a série televisiva «24 horas».
Quantos espectadores, que afiançariam ser de esquerda, andaram entusiasmados com as façanhas de Jack Bauer? É que todos os episódios eram excelentemente realizados para criar ansiedade em quem os via gerando uma recetividade acrítica ao uso sistemático da tortura.
Recordemos uma cena em particular da sexta temporada da série: aquela em que uma bomba nuclear já explodiu em Los Angeles e ainda mais quatro estão por deflagrar.
Os autores do atentado são o pai e o irmão do protagonista e ele consegue prender este último. Numa situação mitológica - a de Abel contra Caim, que vai ao encontro dos arquétipos estruturantes da nossa moral, - Jack tortura o irmão, interpretado pelo excelente Paul McCrane, para evitar a morte de milhões de pessoas.
Se naquele momento parasse a imagem e alguém perguntasse a quem via tal cena se deveria ou não recorrer-se a todos os meios para  evitar o mal maior, dificilmente haveria quem tivesse a coragem de invocar os princípios para alertar quanto aos limites a serem respeitados.
A série contribuiu de facto para dar verosimilhança a uma  autêntica vigarice ideológica: a da «bomba de retardamento»: aquela que justifica a tortura como ato desesperado para evitar um atentado a um local, por exemplo uma escola, onde pudessem estar os nossos filhos. Quem não faria tudo - o legítimo e o ilegítimo - para lhes evitar qualquer perigo?
Foi essa vigarice, que o 11 de setembro suscitou, e permitiu espezinhar a legislação internacional sobre a forma como se tratam os prisioneiros capturados em cenário de guerra.
Para criar uma cultura de permissividade para com a tortura cria-se um enquadramento exagerado, que, explorado emocionalmente até ao paroxismo, permite tudo aceitar.
A série leva a perversidade ao ponto de apresentar como bom o torcionário que tortura: a exemplo de Le Pen, que abordáramos em texto anterior, Jack Bauer adota a postura sacrificial de ser aquele que “suja as mãos” para salvar a comunidade. 

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