domingo, 24 de julho de 2016

Já lá vem outro carreiro...

Uma das notícias mais discretas ocorridas nos meus quinze dias de férias foi a da visita a Portugal de David Harvey, professor inglês na Universidade de Nova Iorque, convidado para um congresso de Sociologia no Algarve e que deu a Alexandra Prado Coelho uma interessante entrevista na edição do «Público» do dia 17 de julho.
Foi uma pena, que as suas palavras tivessem passado quase despercebidas, importando assim regressar a elas e resumir algumas das suas ideias.
Por exemplo que a salvação do capitalismo foi garantida pela China nos últimos anos: apenas nos últimos três anos a antiga pátria de Mao consumiu tanto cimento como os Estados Unidos em cem anos. Mas essa é uma receita clássica, também utilizada pelos norte-americanos, quando tiveram de arranjar emprego para os seus soldados acabados de regressar da Segunda Guerra Mundial. O sistema, quando está em dificuldades de sobrevivência, encontra na construção civil a sua válvula de escape.
Que importa haver na China vastíssimas cidades sem qualquer habitante se o propósito da sua edificação teve apenas a ver com a especulação financeira e não propriamente com a facilitação de novas residências aos seus cidadãos?
Mas já mais complicados são os efeitos de tal aposta na dívida acumulada pelo Estado ou pelos privados, bem como  a progressiva contestação social a quem procura na cidade condições de vida de maior qualidade e acaba por se deparar com disfuncionalidades nos transportes, na educação ou na saúde.
Uma constatação deste fenómeno foi possível obter na grande explosão contestatária nas grandes cidades brasileiras em 2014 e que para Harvey denotou a possibilidade de existirem grandes movimentos revolucionários não tanto pelas questões do desemprego, mas dessa asfixia sentida por milhões de pessoas em urbes cada vez mais insuportáveis, sobretudo quando elas não se sentem representadas nas suas preocupações e aspirações pelo poder político.
Harvey é sibilino, quando denuncia o défice democrático nas nossas sociedades: podemos eleger partidos e líderes, que nos mereçam apreço, mas, à distância, há poderes nunca submetidos à dinâmica do voto a decidirem medidas governativas para as quais não toleram alternativas.
Essa a razão, porque Harvey recupera a importância das ideias de Karl Marx: “Ler Marx hoje faz todo o sentido. De certa forma estamos a voltar às condições de trabalho do século XIX, que é o que pretendia o projeto neoliberal: reduzir o poder do trabalho e pô-lo numa posição em que não tem capacidade para resistir a processos maciços de exploração”.
Corroborando uma possibilidade, que aqui tenho desenvolvido em textos anteriores, David Harvey considera muito provável a tentativa de sobrevivência do capitalismo através da transformação dos trabalhadores em consumidores, sempre na lógica do mesmo tipo de exploração, dotando-os de um rendimento básico: “Tem de se dar às pessoas meios para que possam continuar a consumir para que o sistema se mantenha”. É que a redução dos volumes do emprego só tende a acelerar-se com as inovações tecnológicas, que visam a redução da intervenção da mão-de obra nos processos produtivos. Mesmo tratando-se de um processo, que já vem de longe - em 1969 existiam em Baltimore 37 mil trabalhadores na siderurgia, que se reduziram para 5 mil nos anos noventa, sempre mantendo estável a quantidade de aço fabricada - a sua acentuação só tem conhecido uma mais rápida expressão.
Não é que o rendimento básico corresponda a uma renovada tentativa de levar por diante aquilo que nunca existiu - um “capitalismo de rosto humano” - mas é a única via alternativa aberta ao sistema económico vigente para que, alterando alguma coisa, tudo fique na mesma.
Importa, pois, criar uma alternativa, que não pode assumir contornos de anárquica liberdade. É Harvey quem conclui com o alerta para o facto de não existir um sistema de total liberdade. “Um sistema livre é sempre baseado em alguma percentagem de falta de liberdade. A liberdade existe muitas vezes num contexto de certos tipos de dominação”. O que, por outras palavras significa, e parafraseando alguém, que a Revolução anticapitalista não é nenhum convite para jantar. Tratando-se de uma guerra entre classes de interesses diametralmente opostos constitui uma guerra, que como em todas, dá para dar e levar… esperando-se que, no fim, penda a favor da maioria dos cidadãos.~

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