sábado, 5 de novembro de 2016

Rei-filósofo ou filósofo-rei?

Fará sentido exigir a António Domingues a assumpção de se sentir servidor do povo na CGD? Entre um sábio Sampaio da Nóvoa ou um estarola tipo Tino de Rans faria sentido escolher o segundo para Presidente da República? Justifica-se a sobrevivência da transmissão hereditária do exercício do poder como acontece nas monarquias europeias ou nas ditaduras africanas?
Todas estas questões têm tudo a ver com o que foi discutido e concetualizado na filosofia do século XVIII, quando o advento das ciências através dos enciclopedistas pressupôs a incompatibilidade entre o exercício do poder e a ignorância.
Nessa época, à falta de poderem questionar a legitimidade da sucessão dinástica do poder, os filósofos decidiram seguir a lógica de Maquiavel quando, dois séculos antes, decidira instruir o seu príncipe. Afinal algo que já sucedera com Aristóteles com a educação de Alexandre o Grande, ou de Séneca com a de Nero.
Fénelon, então incumbido da educação do duque da Borgonha, neto de Luís XIV, escreveu em sua intenção um romance didático sobre a viagem do príncipe Telémaco em busca de Ulisses, na companhia do seu professor, cujo nome, Mentor, ficou doravante consagrado nos dicionários como sinónimo de inspirador.
Ao chegarem a Creta, Mentor aproveita para explicar ao filho de Ulisses a importância de Minos como rei-filósofo:
“Não foi por si mesmo, que os deuses o consagraram rei. Ele só o foi para se converter no homem dos povos: é aos povos que ele deve dedicar todo o seu tempo, cuidados e afetos, porque só é digno da realeza se se esquecer de si mesmo e sacrificar-se ao bem público.
Minos só quis que os filhos reinassem depois de si, se se mostrassem fiéis seguidores de tais princípios, mostrando que amava mais o seu povo do que a sua família.”
Escrito em 1699 é evidente que Fénelon refletira bastante sobre os acontecimentos verificados em Inglaterra onze anos antes, quando o rei Jaime II foi substituído por Guilherme de Orange. O destituído encontrara, aliás, acolhimento na corte onde Fénelon prestava serviço. Mas Fénelon torna-se num dos precursores da monarquia constitucional em que o rei deixa de sê-lo por direito divino mas como estando incumbido de ser um servidor do seu povo. É essa, aliás, a razão da sobrevivência das monarquias do norte da Europa onde os soberanos têm funções de representação sem quase nada influenciarem na definição das políticas concretas implementadas aos seus povos. Nesse sentido a forma de exercício do poder pouco muda em relação à tradição feudal, quando o suserano tinha deveres de proteção dos seus vassalos.
Fénelon anuncia, pois, que os príncipes não comportam sabedoria nos seus genes, devendo ser instruídos para a adquirir, porque nenhum líder político poderá dar mostras de ignorância. No fundo, três séculos depois, o facto de termos Albertos Joões Jardins a nível interno, ou olharmos para os Trumps ou os Dutertes, que nos assombram nos telejornais, só demonstra o quanto importa educar os povos para que exijam sabedoria em quem os comanda em vez da mais assustadora incultura.
Poderemos, no entanto, cair no extremo oposto - o do despotismo iluminado - em que o poder se assume como vanguarda dos povos e os conduz de acordo com o seu avançado saber e conhecimento. Reside aí o fundamento de muitas ditaduras, que até podem parecer brandas, como quando a Comissão Europeia despachou Mário Monti para primeiro-ministro de Itália ou Lucas Papademos para iguais funções na Grécia.
Avançando século XXI adentro, importa concluir que se a ignorância significa necessariamente péssimo exercício do poder, não existe a garantia de que um sábio seja necessariamente bom governante. Mas o que se pode asseverar é que nenhum líder político dos nossos dias pode prescindir de quem possui as competências para melhor discernir em que direção empreender o rumo dos seus países.
«A Escola de Atenas», Rafael

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