quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Devolver os zombies às catacumbas

1. Há males que vêm por bem! Segundo Manuel Vasquez Montalban, que escreveu saborosa prosa numa apócrifa autobiografia do ditador Franco, este repetia aquela fórmula até à náusea. Quem o rodeava já a não podia ouvir. Mas ela ganha todo o sentido com a revogação da lei que reduzia provisoriamente a TSU para os patrões, e teve o condão de despertar as esquerdas para os perigos de darem Passos Coelho como morto e enterrado. Bem se enganaram ao julgarem-se de mãos mais soltas para se afirmarem perante o governo de António Costa. E este para julgar desnecessárias as discussões de assuntos mais polémicos com os tácitos parceiros, por ter garantido o assentimento do PSD em matérias que, pela sua natureza, nem sequer se atreveriam a por em causa.
A viragem estratégica da frágil liderança de Passos Coelho tem o condão de desdizer aquilo que jornais e televisões davam por garantido: era cadáver adiado á beira de receber a extrema-unção.  Afinal, como nos melhores filmes de George Romero, os zombies recuperaram alento e saíram ao ataque.
Momentaneamente acantonadas nas respetivas posições, cabe às esquerdas, através da reativação do excelente trabalho produzido por Pedro Nuno Santos na contínua ação de contacto e negociação com os parceiros da maioria, evitar recorrências do passo em falso hoje confirmado na Assembleia da República.
Na entrevista ao «Público», Catarina Martins confirma a intenção do Bloco em segurar o governo durante os quatro anos da legislatura. E até se lhe pode dar acrescida razão, quando saúde a aparente precariedade do governo nas circunstâncias atuais: “Atrevia-me a dizer que a democracia ganha com situações mais complexas do que com situações simples, em que se pensa pouco nas consequências do que é feito e se arrasa muitas vezes o que foi feito durante anos.”
É, pois, tempo de haver sensatez nas esquerdas de forma a que, sem grandes danos, se devolvam os zombies às merecidas sepulturas.
2. Na mesma entrevista, Catarina Martins aborda, igualmente, a sempiterna  questão das divergências com o governo sobre o papel de Portugal na União Europeia e na reestruturação da dívida. Essas diferenças de perspetiva levam os Assis ou os Marques Lopes a pressuporem - erradamente! - que haverá bastante mais a unir o PS ao PSD do que aos partidos à sua esquerda.
Tais opinadores iludem a verdadeira questão: o separar de águas não se faz por tais questões, mas pela aceitação ou rejeição das receitas neoliberais. Ora, à exceção de um isolado punhado de resistentes, a grande maioria dos socialistas mandou ás urtigas as políticas baseadas nas privatizações, na desregulação e na flexibilização das leis laborais, que o execrado modelo neoliberal pressupõe incontornável com o beneplácito das instituições europeias, quase todas controladas pelo PPE. Hoje, a maioria dos militantes e simpatizantes socialistas - e, nos últimos anos, Mário Soares foi tenaz defensor desta tendência! - pretende mais igualdade, justiça e educação, sem resquícios da malfadada Terceira Via.
Numa altura em que os acontecimentos estão a reacelerar o curso da História, bastam entropias como o Brexit, o protecionismo à la Trump ou a previsível independência da Escócia, para gripar o castelo de cartas, seriamente instabilizado pela perversão do projeto europeu. E, muito me engano se, nos próximos anos, não der com as esquerdas a convergirem sem tibiezas na reinvenção de tal sonho, conquanto ele seja pensado em função dos seus cidadãos e não das oligarquias, que dele se apossaram como forma de melhor abocanharem uma mais obscena acumulação de capital!

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