quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POLÍTICA: Ayn Rand, a apóstola do egoísmo, que inspira a direita americana

Na revista «Telerama» desta semana a jornalista Juliette Cerf publicou um texto muito interessante sobre Ayn Rand, a paladina dos ideais, que a direita, quer a norte-americana acolitada atrás de Romney e Ryan, quer a portuguesa atrás de Passos Coelho e Vítor Gaspar, querem levar por diante.
Quando fala em «refundar» o Estado e reduzi-lo ao mínimo, Passos Coelho está a mostrar-se um seguidor deste tipo de ideias, que rompem com a tradição compassiva da direita tradicional e apostam na imposição de uma desigualdade extrema entre os ricos e os pobres.
O que significa o agudizar de uma guerra social para a qual não pode haver quaisquer tibiezas: é tempo de as esquerdas saberem unir forças, porque a direita está a conspirar a várias vozes pelo seu objetivo (vide as inacreditáveis declarações de Fernando Ulrich!).
Fica aqui a tradução do texto de Juliette Cerf pela importância em melhor conhecermos os nosso inimigos...

Segundo uma testemunha só pelo olhar ela conseguiria fazer murchar um cato. As capas negras, as boquilhas em marfim e os emblemas em forma de dólar, fazem parte da lenda: desconhecida na Europa, Ayn Rand é idolatrada nos EUA.
Uma investigação da Biblioteca do Congresso sobre os livros mais influentes nos EUA, classificam o seu Atlas Shrugged (1957) em segundo lugar logo depois da Bíblia.
Tão longe e tão próximos: é que Ayn Rand não se enquadrava nos preceitos judaico-cristãos. Segundo ela um homem (digno de o ser, claro!) só deveria viver por e para si mesmo. Como? Utilizando a razão, incompatível com a fé, seguindo o único interesse racional em forjar a sua liberdade e recolher a parte leonina no sistema ideal, o capitalismo fundamentado na liberdade plena dos mercados.
No mundo randiano os empreendedores são incensados enquanto heróis dos tempos modernos em que o egoísmo é a virtude suprema. A única ética aceitável. Porque o altruísmo, que torna o homem dependente dos outros, é uma “noção monstruosa. É a moralidade dos canibais que se devoram uns aos outros”, defendia Rand.
Brilhante e voraz sacerdotisa da liberdade, inclusive nas questões sociais, Ayn Rand forneceu argumentos morais e antropológicos ao mais exacerbado individualismo. A sua “filosofia para viver com os pés assentes no chão”  é a legitimação do liberalismo mais radical, tendo inspirado Alan Greenspan, o seu mais fiel acólito que, nomeado por Ronald Reagan, dirigiu a Reserva Federal durante dezasseis anos.
Para ela Reagan era um frouxo, Kant um hippie e Kennedy um fascista!
“Trinta anos depois da sua morte, a influência de Ayn Rand nunca foi tão grande. Nunca. Contrariamente ao que pensam alguns dos seus detratores , que querem desvalorizar a sua herança, o seu extremismo provocador não se situa nas margens. Está bem no centro do debate nacional, explica Gary Weiss, um jornalista que acaba de publicar um ensaio intitulado Ayn Rand Nation.
Basta ligar a televisão: Mad men, Os Simpson, South Park e Daily Show falam dela. Lê-se a imprensa: o New York Times e o Wall Street Journal discutem as suas ideias. Weiss acrescenta: “Através dela está em causa uma luta pela alma americana.
Nascida na Rússia, com o nome de Alisa Rosenbaum, Ayn Rand almejou intensamente essa mesma alma americana, enquanto antídoto contra o comunismo, em cujos ideais tinham sido confiscados o apartamento e a farmácia da sua família em São Petersburgo em 1917. Apaixonada pelo cinema, Alisa inscreve-se no Instituto Técnico das Artes Cinematográficas em 1924. Em 1926 embarca sozinha para a América e dirige-se a Hollywood, aonde cai em graça a Cecil B. DeMille, que lhe dá a alcunha de Caviar e a contrata como figurante.
Torna-se argumentista e dramaturga, publicando dois romances - The Fountainhead (1943) e Atlas Shrugged (1957) - que lhe dão fama em Nova Iorque.
 Nos anos 60, defende uma filosofia dita objetivista nas universidades americanas. Segundo o republicano Romney existe um braço de ferro entre a mão invisível do mercado contra a pesada mão do Estado. As duas visões da América que se confrontam no presente combate eleitoral nunca se opuseram com tanta radicalidade. Nomeadamente quanto ao papel do governo e do indivíduo no grupo, temas privilegiados nos textos de Ayn Rand.
Sacrificar o indivíduo (criador) à sociedade (predadora)é, para ela, um crime contra a humanidade. E o Estado torna-se no pior inimigo do homem se não for contido, pois só tem que fornecer três serviços: a polícia, o exército e a justiça.
 Uma leitura apressada das ideias de Ayn Rand inspiraram Paul Ryan, o candidato a vice-presidente republicano. Adepto dos cortes orçamentais e da redução de impostos, este ultraconservador que preside à comissão do Orçamento na Câmara dos Representantes quer reinjetar o sonho americano no flácido ventre de uma América em perda de velocidade: “Se devesse prestar homenagem a alguém por me ter estimulado a entrar na política seria Ayn Rand. Porque não se iludam: o combate que travamos é o da luta do individualismo contra o coletivismo.” disse a uma plateia constituída por outros discípulos de Rand.
A Segurança Social? Coletivista, e portanto a ser inteiramente privatizada.
O ódio à religião professado por Rand? Demarcar-se dele custe o que custar.
“Antes de minimizar a sua influência por causa do seu ateísmo visceral e das suas posições pró-aborto, muito incómodas neste período eleitoral. Paul Ryan elogiou Ayn Rand no Atlas Society em 2005, por ocasião do centenário do seu nascimento”, lembra David Kelley, filósofo fundador dessa organização criada em Washington para divulgar as ideias objetivistas e fazer concorrência ao Ayn Rand Institut da Califórnia.
“Estou convencido que o pensamento de Rand é aberto e só ganha em ser debatido.”, acrescenta. Prova dessa “abertura” é o facto de nos esperar no Hotel Intercontinental aonde assiste à Conferência do Atlas Network, uma organização que milita por uma sociedade  “livre e próspera”, que abomina o Estado Social, esse “cancro satânico” que limita a liberdade individual e fomenta políticas prejudiciais ao futuro. “O problema dos EUA de hoje não é a oposição entre ricos e pobres, mas a dos atores (makers) contra os parasitas (takers), os que se responsabilizam por si mesmos e os que não se mostram capazes disso mesmo, nem o tentam fazer.”
Este discurso lembra alguma coisa? Claro que remete para as declarações de Mitt Romney perante os ricos financiadores da sua campanha, ao vilipendiar os 47% de americanos assistidos  pelo Governo, quase não pagando nenhum imposto de rendimento e acomodados à sua mentalidade de vítimas.
Jennifer Burns, professora de História em Stanford, autora de Godess  of the market, Ayn Rand and the American Right, comenta esse discurso: “Não tenho a certeza em como Mitt Romney tenha lido Ayn Rand, mas do que não duvido é que essa visão dos 47% subscreve essa divisão enunciada por Rand entre os produtores (producers) e os espoliadores (looters). (…) Rand considerava imorais os programas sociais do governo, destinados a roubar os que produziam para ajudar aos improdutivos. A sua filosofia é uma droga iniciática para a direita americana.”
Do lado democrata, “todos os discursos do Presidente repudiam as ideias individualistas de Ayn Rand.” explica o ensaísta Gary Weiss. Orador eloquente, que muitos compatriotas equiparam a um perigoso «socialista europeu», Barack Obama reescreveu o grande mito do self made man solitário, ao mesmo tempo que acentuava os laços, que ligam os americanos.
 “Se tiveram sucesso é porque alguém vos ajudou no passado. Um excelente professor. Alguém ajudou a construir este incrível sistema americano que é o nosso. Alguém investiu nas estradas e nas pontes. Se vocês têm uma empresa, não foi porque a criaram. Alguém a fez anteriormente.” ousou declarar o Presidente provocando, antes dos 47% de Romney, a primeira controvérsia randiana da campanha.
Mas, ao rejeitar tão virulentamente a comunidade, depois de ter visto os seus bens confiscados  pelos bolcheviques, Ayn Rand não constituía um verdadeiro contrassenso a um dos principais fundamentos da sociedade americana - o de se definir enquanto comunidade familiar, religiosa ou étnica?
Esse  esquecimento é voluntário, porque o seu objetivo era o de criar uma nova ética, estritamente individualista, em que o bem e o mal não fossem determinados pelas relações interpessoais ou sociais, mas pela única integridade de um indivíduo para consigo mesmo. É por essa razão que a leitura de Ayn Rand é frequentemente vivida como uma espécie de conversão, um acontecimento que forja uma visão do mundo!”.
“A leitura de Ayn Rand mudou a minha vida“, afirma um entusiasmado Antoine Bello, romancista e homem de negócios franco-americano que vive a norte de Nova Iorque. “Rand tem um entendimento muito profundo do mundo dos negócios, dos circuitos de decisão. A exemplo dos seus heróis, eu vivi uma metamorfose, passei a ver o mundo através de um prisma diferente: os empreendedores são considerados como carrascos, quando são vítimas, sobretudo em França aonde são vistos como uns párias. São eles os heróis, os que assumem todos os riscos… Antes de redistribuir a riqueza, é preciso criá-la.”
Esta inversão das relações de classes em relação ao marxismo é tipicamente randiana. Em Atlas Shrugged, Ayn Rand inverte a lógica dos «Tempos Modernos» de Chaplin e mostra os pobres a explorarem os ricos. Trata-se de um livro modelo para o Tea Party, movimento anti-Estado e anti-impostos surgido em 2008 como reação à crise económica e à política de Obama, designadamente contra a sua reforma na Saúde.
Essa ficção é para eles uma espécie de profecia do que acontece quando o governo é demasiado intrusivo: os produtores deixam de trabalhar e a economia afunda-se”, explica Jennifer Burns.
Ficção? Ayn Rand ~começou por sonhar os EUA através do cinema. Como o sugeria John Ford, quando a lenda ultrapassa a realidade, opte-se pela lenda...



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