sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

POLÍTICA: Um processo revolucionário invertido


Parece-me bastante desviado o “debate” sobre a liberdade de expressão ou a adequação dos modos de manifestação, debate esse que se seguiu aos protestos durante as últimas aparições públicas de Miguel Relvas. A assimetria de poder, o facto de a democracia não se resumir ao voto, e a situação em que nos encontramos devia obrigar os “debatedores” a não colocarem as coisas no plano da aparente normalidade. A “normalização” da situação política é, aliás, a estratégia central do poder instalado. Ora, a situação que vivemos é profundamente anormal. Em primeiro lugar, vivemos sob intervenção externa, o que resulta numa limitação da soberania ainda maior do que a que já tínhamos – redundando numa limitação da democracia, portanto. Em segundo lugar, o governo que temos não só não cumpriu o que prometeu, como resolveu ir mais longe do que as exigências da troika. Em terceiro lugar, a oposição de esquerda encontra-se inoperante e cristalizada, justamente quando mais seria necessária a sua intervenção, e a figura do presidente da república simplesmente desapareceu. Em quarto lugar, a recessão e o desemprego atingiram níveis que estão perto do catastrófico, isto é, da insustentabilidade das condições fundamentais para uma democracia a sério. Em quinto lugar, o que está em curso é um processo revolucionário de destruição – e não de racionalização, como querem fazer crer – do sistema social em que temos vivido. Como ele é constitutivo das próprias condições da democracia, esta está claramente a ser destruída. Já alguém chamou à atual situação a ditadura da austeridade. Como não é uma ditadura clássica, as formas de a ela reagir tão-pouco serão clássicas. Se são as certas ou não, essa é outra discussão. Válida. E importante, e remetendo para questões de princípio. Mas, a meu ver, ela não pode ser começada, nem feita, sem se considerar primeiro o contexto em que vivemos. Note-se: ele nunca deve servir de justificação para impulsos antidemocráticos. Mas deve servir para pensarmos se o que nos vendem a partir do poder, da sua propaganda da normalidade e da sua atitude de virgens ofendidas, não será exatamente a ilusão de democracia. Quem me dera que pudéssemos estar a discutir o contrato social básico sobre o bom e o mau comportamento nas relações entre governantes e governados. Seria sinal de democracia a funcionar.
Este texto não serve para subscrever as posições de fulanos ou sicranos, para dizer se concordo ou não com os estudantes do ISCTE ou a minha opinião sobre a ética ou falta dela de Relvas. Serve para dizer simplesmente isto: vivemos um processo revolucionário invertido, de cima para baixo, uma mudança de regime à socapa, e uma situação análoga às guerras. Esse é o verdadeiro perigo. Ou o “mais verdadeiro”. Não fomos nós, eleitores, governados e contribuintes que suspendemos a normalidade do sistema democrático, a começar pela sua base, a democracia social.
Miguel Vale Almeida

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