quinta-feira, 20 de junho de 2013

LIVRO: «O Coração Do Tártaro» de Rosa Montero

Este romance de Rosa Montero já tem doze anos, aborda um tema da maior atualidade do nosso tempo - a desestruturação de muitas vidas e de partes significativas das nossas urbes por causa dos problemas relacionados com o tráfico de drogas.
A protagonista é Sofia Zarzamala, jovem editora de livros medievais, que acorda angustiada numa manhã de invernia, sem imaginar as provações a que se sujeitará nas vinte e quatro horas seguintes.
O pior é que as desgraças não costumam fazer-se anunciar (…) mas há indivíduos que não sabem proteger-se do medo do abismo. Zarza pertencia a este último grupo. Sempre soube que o infortúnio se aproxima com pezinhos de lã, calados e insidiosos. (pág. 11)
Ela preparava-se para cumprir a rotina a que se habituara naqueles últimos sete anos, feita de cumprimento escrupuloso das suas tarefas profissionais, quando, ainda no duche, é interrompida por um telefonema capaz de a fazer estremecer. Do outro lado, uma voz masculina diz-lhe triunfalmente: Encontrei-te.
De repente é o pânico: Zarza foi tão rápida nos seus movimentos que, três minutos após ter recebido a chamada, já estava pronta. Às 08h19 saía pela porta do apartamento sem saber se alguma vez poderia regressar, enquanto nas suas costas repicava em desafio a campainha do telefone, invasor triunfante da casa vazia. (pág.15)
Ainda sem mal saber para onde se dirigir, ganha, porém, uma convicção: Tinham-se acabado para ela os dias normais (Pág. 16).
Esse homem de quem fora em tempos tão íntima - tratava-se, afinal, do seu irmão gémeo! - constitui agora uma ameaça. Restando-lhe duas únicas opções: escapar-se-lhe ou matá-lo!
Começa por decidir-se pela primeira dessas opções, ainda que pondo em risco o emprego, aonde não poderia voltar. Porque conta sair da cidade, vai despedir-se do irmão mais novo, Miguel, que está internado numa clínica psiquiátrica. Só que Nicolás já se lhe antecipara, deixando-lhe aí um bilhete: Venho cobrar o que me deves.
A desagradável surpresa fá-la mudar de estratégia: já não se ia embora. Por Miguel, a quem tinha prometido; e também por ela própria. Postas assim as coisas não restava a Zarza outro remédio senão aceitar o desafio e dar luta. E a primeira coisa a fazer era regressar à cidade da Rainha, de onde pensava ter saído de uma vez para sempre. (Pág. 27)
Essa cidade ocupa o mesmo espaço dessa outro em que Zarza vivera nos últimos anos. Como se constituísse um mundo paralelo! Mas, na realidade era a zona mais degradada da urbe, conquistada por todas as formas de delinquência: a droga, a prostituição, o tráfico de armas: A cidade da Rainha não se limitava a ocupar uma zona dos subúrbios , estava um pouco por toda a parte. O mapa da cidade convencional e da urbe maldita sobrepunham-se; às vezes partilhando o mesmo espaço: havia zonas que eram inofensivas e burguesas durante o dia, dúbias e marginais de madrugada. (pág. 28).
Zarza procura aí ajuda junto do Duque, um traficante que, em tempos, perdera um dos netos por culpa de Nicolas. Mas sabendo quanto ela fora responsável pela prisão do irmão, a quem denunciara à polícia, rejeita-lhe qualquer ajuda. De facto, na época de maior desespero quanto á dependência de ambos das drogas, tinham tentado roubar um banco e o golpe saldara-se pela condenação perpétua a cadeira de rodas do jovem guarda, que procurara evitar-lhes o ataque. Dois dias depois, ela entregara-se à polícia e informara aonde poderiam capturar Nicolás.
Sempre sentindo-se acossada pelo seu perseguidor, cuja presença imagina em todas as direções para onde se dirige, recebendo recados ameaçadores nos lugares mais inimagináveis, Zarza recorda o passado, quando vivera a progressiva deriva da mãe para a loucura, os abusos sexuais do pai, que tanto incidiam nela como na irmã mais velha, Marina, e a responsabilidade de Nicolas em tê-la mergulhado no mundo infecto da Rainha Branca.
Zarza chegava à conclusão de que devia arranjar uma pistola. O recado que encontrara no interior do automóvel tinha-lhe rebentado os nervos; sentia-se incapaz de continuar à espera do seu perseguidor coma  passividade do cordeiro amarrado a uma estaca. (pág. 48)
 A explicação para o título surge na página 83 do romance e associa a figura do conquistador mongol ao desse pai abusador, que acabaria por desaparecer definitivamente da vida dos filhos quando, já enviuvado involuntariamente, ou por vontade própria (Zarza interroga-se se não terá ele precipitado os comprimidos fatais pelas goelas da mãe!), uma trafulhice financeira o levara a escapar do país à pressa: talvez tivessem sido os tártaros que roubaram a meninice a Zarza, aquela meninice feliz que era impossível de recordar, apesar de estar fotografada na caixa de música; talvez tenha sido Gengiscão, o ladrão de todas as doçuras, quem lhe arrebatou a infância na sua germinação e na sua promessa, da mesma maneira que arrebatou o sopro a todas as crianças que degolou, sem pestanejar, enquanto a civilização ardia lentamente no rescaldo de uma enorme fogueira.
Nos anos vividos na dependência da Rainha, Zarza prostituíra-se e chegara a vender o irmão deficiente a um velho lascivo para que dele abusasse. A Rainha mata-nos, mas sem a Rainha não desejamos viver, e muitas vezes não há outra solução além de correr e correr cada vez mais depressa, galopar para o abismo e estatelar-se (pág. 117)
Até ao dia em que Urbano, um rude carpinteiro, a consegue resgatar durante uns meses, convidando-a para com ele partilhar uma vida pequeno-burguesa.
Mas fora experiência breve, porque ela recairia, fugindo de casa com as poupanças dele para gastar tudo em droga. Agora, em breve surtida á casa da infância, Zarza consegue confirmar ser ali o quartel-general de Nicolás desde que saíra da prisão: Encostada a um muro, a tremer, tentou recuperar o funcionamento dos pulmões, ao mesmo tempo que na sua consciência começavam a aterrar as confusas memórias do que tinham vivido: a sensação de decadência, a ameaçadora melodia da infância, a presença evidente de Nicolás, o tumulto opressivo daqueles quartos sombrios. (pág. 110).
Nas horas seguintes Zarza vai procurar apoio junto de sucessivos rostos do passado: Urbano que, apesar de todo o mal que lhe causara, continua a amá-la. Marina, que detesta ver a sua tranquilidade burguesa afetada pela inesperada visita daquela irmã de quem se quereria ver o mais afastada possível. Caruso, o antigo proxeneta, que continua tão detestável, quanto dele se lembrava. Ou, novamente Miguel, de quem consegue obter o perdão por quanto o sujeitara enquanto mercadoria sexual de troca para o pagamento do seu vício.
Até que se encontra finalmente na presença de quem a ameaça, ficando-lhe a dúvida quanto à identidade: era Nicolas, como até aí sempre imaginara, ou o pai regressado do passado a que o julgava definitivamente remetido?
Agora que pensava nisso, Zarza não tinha a certeza absoluta da identidade do homem do espelho. Podia ser o pai, evidentemente, como julgou a princípio. Mas também podia ser Nicolas. Estava envolvida pelas sombras, distinguia-se mal, havia sete anos que não se viam, o irmão dela devia ter envelhecido e, no fim de contas, sempre se tinham parecido fisicamente. É claro que, por outro lado, a malignidade do cerco a que havia sido submetida, aquele estúpido jogo persecutório, combinava mais com o carácter perverso do pai. (pág. 209)
No final em aberto, que o livro nos deixa, temos Zarza a procurar uma hipótese de felicidade na retoma da experiência amorosa com Urbano, por muito que a saiba eivada de muitas ameaças no futuro...


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