segunda-feira, 2 de setembro de 2013

LIVRO: «La fin de l’homme rouge» de Svetlana Alexievitch

Há mais de trinta anos que a jornalista e escritora  bielorrussa Svetlana Alexievitch se pôs à escuta das testemunhas do seu tempo para criar o que designou por «romances de vozes».
Esses testemunhos são interligados, preservando-se-lhes a emoção e a vitalidade de cada uma . Há vozes das que foram mulheres soldados ou crianças nos tempos da guerra entre a URSS e a Alemanha nazi. Ou dos jovens recrutados para  guerra do Afeganistão à mistura com os das mães ou das viúvas resultantes dessa campanha. Ou também os que testemunharam e foram vítimas da catástrofe nuclear de Tchernobyl.
Todas essas vivências e experiências individuais integram arquivos confidenciais, ameaçados pelo seu esquecimento ou negação. E que Svetlana Alexievitch transforma numa História polarizada pelo que se viveu e sentiu.
No prefácio de um dos seus livros anteriores ela escreveu: não escrevo sobre a guerra, mas sobre o homem na guerra. Não escrevo uma história da guerra, mas uma história dos sentimentos. Noutro dos seus títulos ela também assinalou que não lhe interessa a história da implosão da URSS e do antigo império comunista na era capitalista, mas antes a auscultação do coração e da alma desse tipo de homem em particular: o Homo sovieticus, esse indivíduo que passou do totalitarismo para uma nova forma de niilismo sem qualquer transição. Nascido e educado na utopia socialista - ou, pelo menos, no seu fatigado avatar da era Brejnev/ Andropov/ Tchernenko - brutalmente obrigado a renunciar às suas rotinas, aos seus saberes, à sua história e aos seus mitos, e convidado a usufruir da sua inédita liberdade, equivalente a consumismo desenfreado, a maiores desigualdades sociais, a conflitos de uma enorme violência entre povos outrora reunidos sob a mesma bandeira vermelha com a foice e o martelo.
Os homens e as mulheres cujas confissões foram ouvidas por Svetlana Alexievitch contam as suas aspirações passadas e presentes, a sua conceção de liberdade e as suas histórias amorosas, de lutos, de infelicidades e de alegrias que compuseram as suas vidas.
Existem duas gerações a preencherem estas páginas. Em primeiro lugar a das cozinhas: Foi na sua época (anos 60 e 70) que as pessoas deixaram os apartamentos comunitários e começaram a ter cozinhas privadas em que podiam criticar o poder e sobretudo não voltarem a ter medo, porque estavam mais à vontade.
Hoje sexagenários, foram educados no culto de Lénine, Staline e do heroico Exército Vermelho, conheceram o alistamento obrigatório nas Juventudes Comunistas, o medo permanente da polícia política e a sombra ainda ameaçadora do goulag. Em agosto de 1991 estavam na rua para se oporem ao golpe contra Gorbatchev e defender uma certa ideia - teórica, sublimada - da liberdade.
Ei-los agora siderados, esmagados, entre a desilusão e a cólera. Um deles diz: Conhecemos os campos, cobrimos a terra de cadáveres durante a guerra, apanhámos de mãos nuas o combustível atómico em Tchernobyl. E agora vemo-nos nos escombros do socialismo. Como depois da guerra.
A segunda geração é constituída pelos seus filhos, hoje com 20 ou 30 anos, que cresceram na época pós-totalitária, mas mergulhados num caos económico e sobretudo espiritual e moral sem solução à vista. A sofrerem mais do que os seus predecessores, privados da possibilidade de sonhar ou ter qualquer esperança, senão a do exílio. É com eles que se sente maior a empatia de Svetlana Alexievitch, muito embora o seu propósito não seja o de sintetizar tantos testemunhos numa qualquer conclusão: é na sua diversidade, que se depreende o grande interesse do livro. Que dá razão ao que Nadejda Mandelstam disse um dia: a nossa maior qualidade não é o heroísmo, mas a capacidade para resistir.


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