segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

FILME: «Os Despojos do Dia» de James Ivory (1993)

Após o grande sucesso de «Regresso a Howard’s End» em 1991, em que os atores principais já eram Anthony Hopkins (que, nesse mesmo ano, ganhara notoriedade com o filme «O Silêncio dos Inocentes» de Jonathan Demme) e Emma Thompson (que vinha das bem sucedidas adaptações shakespearianas do seu conjugue de então, Kanneth Branagh), James Ivory pôde enfim realizar aquele que considerava o projeto mais importante da sua filmografia: a adaptação de um romance inglês assinado por um escritor de origem japonesa: Kazuo Ishiguro.
Para o argumento, a música, a fotografia e a produção, recorreu à sua habitual equipa, que lhe dava a segurança necessária para voltar a abordar os temas mais comuns nos seus filmes anteriores: a responsabilidade individual, o peso dos preconceitos e dos constrangimentos sociais e culturais, bem como as relações entre as histórias pessoais e as que comandavam os destinos coletivos de uma determinada época.
Desprezado por muitos cinéfilos (que não o consideram um “autor”), «Remains of the Day» é um dos maiores sucessos desse inclassificável realizador americano - quantas vezes erradamente tido por britânico! - pela delicadeza dos sentimentos e pela acuidade da análise das relações em jogo.
Em 1956 um mordomo inglês envelhecido, James Stevens, ao serviço do americano Lewis, novo proprietário de Darlington Hall, está à procura de Miss Kenton, uma governanta que, vinte anos antes, trabalhava no castelo e estava dele enamorada.
Infelizmente ele não lhe soubera reconhecer esses sentimentos e vira-a aceitar o pedido de casamento de outro mordomo.
Stevens planeia convidá-la para voltar a trabalhar consigo. Pouco antes da guerra, ambos haviam trabalhado ao serviço de Lord Darlington, um político importante encarregado pelo governo de procurar restabelecer os laços entre a Inglaterra e a Alemanha e, por isso mesmo, incapaz de compreender a verdadeira natureza do regime nacional-socialista.
Na época, Lord Darlington servia de anfitrião a dignitários nazis com os quais sentia tal empatia, que devolvera à Alemanha as duas criadas judias, que começara por acolher na sua residência.
Fora em vão que um jovem congressista americano, esse Lewis, que viria a comprar a propriedade, o procurara alertar para o que era a monstruosidade hitleriana.
Muito compenetrado com as suas responsabilidades, Stevens, cujo pai fora o anterior mordomo, privara-se, por consciência profissional, de ajuizar o sucedido ou de interpretar os sinais de declínio do progenitor entregue aos cuidados de Miss Kenton nos seus derradeiros dias de vida.
Desejoso de exercer o melhor possível a sua função, e circunscrito ao papel social com que se identificava, Stevens aproveita o crepúsculo da sua vida para, conjuntamente com Miss Kenton, que recusa voltar a Darlington Hall, constatar as suas “cegueiras” e como desperdiçara ingloriamente as vidas de ambos.
No romance de que o filme foi adaptado, Stevens é o narrador. Aqui, ele encarna um dos muitos personagens. O grande talento de James Ivory consiste em mostrar em todas as circunstâncias o contexto de uma sociedade, onde cada um tem as suas razões para se investir num papel e numa conjunto de coordenadas sociais, que o podem privar duma compreensão global do que está à sua frente. Por exemplo, Lord Darlington, que pagará ulteriormente o preço da sua amizade com os nazis, não é apresentado como um monstro ou um inconsciente, mas mais como um «amador» da política, como o próprio Lewis lhe sugere: é também um homem assombrado pelos remorsos pessoais devido à situação em que um amigo alemão ficara na sequência do tratado de Versalhes de 1919.
Pelo seu lado, Lewis também não é nenhum menino de coro, porque jamais abdica dos seus interesses pessoais.
A exemplo de Luchino Visconti, que foi subestimado a propósito dos seus filmes históricos, James Ivory é um realizador criticado pelos cenários luxuosos, que denunciam uma certa propensão decorativa. No entanto, ele propõe sempre a análise de um determinado período, a começar por «Shakespeare Wallah» com o qual dava, em 1965, a explicitação da Índia à beira da descolonização através da tournée de uma companhia teatral inglesa, até este «Os Despojos do Dia», abordando a história do Ocidente  durante mais de dois séculos no que ela consistiu no confronto entre culturas, valores, classes e continentes.
Nos seus primeiros filmes mostrava as ilusões «universalistas» dos colonizadores ocidentais na Índia recorrendo à colaboração da romancista e guionista Ruth Prawer Jhabvala. O indivíduo nunca é aí visto com desprezo ou superioridade, mas ao mesmo tempo vemo-lo sempre a ceder nas opções morais, dobrando-se às conveniências dos «grandes princípios» das classes dominantes às quais se deve sujeitar.
O mordomo de «Os Despojos do Dia» é patético ao consciencializar os seus limites, mas sem considerar nenhuma atitude alternativa. É deliciosa a cena em que Miss Kenton o surpreende a ler romances românticos. E comovente aquela em que se recusa a ver o estado de saúde a que chegou o pai.
A exemplo de «Regresso a Howards End» em que interpretava o papel de um tirano doméstico, Hopkins é aqui um doente afetivo, que demasiado tarde avalia tudo quanto perdeu...



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