terça-feira, 7 de janeiro de 2014

POLÍTICA: Eusébio e a sua utilização pelo Estado Novo

Agora que quem quis chorar Eusébio, o chorou, quem quis a seu respeito afivelar um ar compungido, afivelou, e quem quis ficar indiferente ao fenómeno de manipulação coletiva, que o seu enterro representou, ficou, é tempo de olhar para os factos e analisar o importante papel representado pela exploração do seu lado iconográfico pelo Estado Novo. É o que faz o investigador do ICS-UL, Nuno Domingos, no texto hoje inserido no «Público» («O lugar de Eusébio no Estado Novo») e que evoca precisamente a exploração da figura do jogador por um regime apostado em adiar tanto quanto possível o seu anunciado enterro. Sem que se tivesse alguma vez conhecido no jogador qualquer reação incomodada por essa função de alibi institucional do mesmo regime, que tardava em reconhecer os direitos do seu povo à independência. Pelo contrário se incómodo alguma vez manifestou terá sido pela designação de «Pantera Negra» por rejeitar qualquer aproximação aos «Black Panthers», o movimento radical de tão significativa importância para o reconhecimento dos Direitos Cívicos nos Estados Unidos.
No período anterior à Guerra Colonial vigorava em Portugal uma cultura profundamente racista, em nada comparável com o preconceito larvar ainda hoje remanescente desse período. A imagem do negro era a de um ser inferior destinado a ser evangelizado pelos brancos, de modo a tornar-se num servo humilde e produtivo para a ambicionada exploração pelos brancos. Recordemos que os sucessivos Estatutos dos Indígenas vigoraram entre 1926 e 1961 até que o ministro do Ultramar de então, adriano moreira, tratou de os revogar, por serem totalmente inadmissíveis por uma comunidade internacional conquistada para a ideia da injustificação das discriminações políticas e sociais em função da cor.
Para quem viveu esse tempo, não pode esquecer os livros de banda desenhada em que nos tentavam convencer em como os «pretos», os «escarumbas», eram invariavelmente estúpidos ou maldosos por natureza.
Eusébio vem para o Benfica no mesmo ano em que começa a Guerra Colonial e em que muitos dos países africanos acedem à independência. O regime, que já conhecia dissabores na Índia, sentiu que a almofada conferida pela pertença à NATO, já de pouco valia, ensaiando então uma viragem conceptual anunciada pelo paulo portas da época: o ministro franco nogueira. Em vez de um Império Colonial, Portugal seria uma entidade multicontinental e multirracial, em que brancos e negros tenderiam a ser iguais em direitos e deveres. É, nesse contexto, que a utilização da imagem de Eusébio se revelará extremamente oportuna. Porque, enquanto os estádios ingleses, raramente viam em ação jogadores, que não fossem brancos - apesar da dimensão do Império Colonial de que a Coroa estava então a separar-se - em Portugal existiam jogadores da dimensão de um Eusébio, de um Coluna, de um Hilário ou de um Vicente, que até tinham a «honra» de chegarem à seleção.
A exemplo da Argentina de Maradona, que conseguiu ganhar o Mundial de Futebol em plena ditadura dos generais, Portugal conseguiu o sucesso que todos conhecemos em 1966. Não terá sido por isso, que um e outro regime terão sobrevivido à condenação histórica, que a sua anacrónica essência implicava, mas podemos sempre conjeturar o quanto esses momentos utilizados pelos seus títeres para escamotearem o tipo de exploração e de agressão perpetrada sobre os seus respetivos povos (ou sobre os povos coloniais, no caso do salazarismo), atrasaram a sua definitiva derrocada.
A História está bem recheada de exemplos de passos atrás dados na sua evolução por circunstâncias excecionais, que fazem momentaneamente retardar a sua evolução. Essas circunstâncias podem ser vitórias desportivas e explica-se, por isso mesmo, a relevância dada pelo regime de Hitler à preparação dos Jogos Olímpicos de 1936 ou como Reagan quis acelerar a implosão da União Soviética ao convencer dezenas de países a boicotarem os de Moscovo em 1980.
Noutras alturas é a obscena exploração de um casamento (o de carlos e diana em pleno thatcherismo), ou de um enterro para distrair os cidadãos dos seus verdadeiros problemas.
Com um mês de intervalo, a exploração em torno das mortes de Mandela e de Eusébio cumpriu o mesmo objetivo: fazer esquecer, por pouco que seja, o efeito de políticas implementadas em desfavor da maioria. Na esperança de ver diluídos os focos de contestação, que elas necessariamente implicam.


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