quarta-feira, 30 de abril de 2014

HISTÓRIA: A ética e a determinação contra a corrupção salazarista

Este ano a RTP interrompeu uma tradição já com alguns anos no seu segundo canal não passando documentários nacionais durante as vinte e quatro horas de duração do dia 25 de abril. Tratou-se de apenas mais um sinal do incómodo que a efeméride causa nas meninges dos turiferários do atual poder na televisão pública.
Ainda assim, e porque há mínimos a cumprir, lá apresentaram cinco documentários ao fim da noite entre a segunda e a sexta feira da semana transata. Dois deles vimo-los agora a posteriori e são testemunhos eloquentes sobre aquilo que já há muito se sabe, mas é esquecido ou propositadamente ignorado por muitos: que o regime salazarista era composto por gente sem qualidades éticas, cívicas e de coragem ao contrário do que sucedia na Oposição onde avultavam personalidades brilhantes e de uma dimensão humana admirável.
É difícil não ser primariamente maniqueísta, quando se trata de comparar a tacanhez, a malignidade e a hipocrisia de um ditador, que liderava a forma mais nefasta de corrupção: se prescindia do enriquecimento em dinheiro e em propriedades, não mostrava o menor escrúpulo em que por ele matassem, torturassem e aviltassem milhares de pessoas só para que pudesse manter-se nas cadeiras do poder até uma delas se cansasse e o atirasse definitivamente ao chão. Entre uma forma de corrupção baseada na ganância ou a que é motivada pela sede de poder não é fácil escolher qual a mais nefasta!
Os dois documentários em causa traçam o percurso biográfico de outros tantos homens notáveis, mas quase opostos entre si: em ««Ser e Agir» temos o médico Miller Guerra visto pela câmara dirigida pelo seu neto João. Em «O Império e os Românticos Armados» o realizador António José Almeida dá voz a Camilo Mortágua e aos que o conheceram e admiraram.
No caso do primeiro, que foi uma das vozes mais influentes da Ala Liberal no tempo do marcelismo, admira-se a dimensão ética de quem se preocupava com a necessidade de alargar o direito à saúde e à educação a todos os portugueses. Por isso mesmo António Arnaut rejeita a condição por que é conhecido - a de pai do Serviço Nacional de Saúde - e considera-se discípulo desse mestre para quem o catolicismo era, mais do que uma experiência interior, um compromisso humanista para com os seus semelhantes.
Num dos momentos mais curiosos do filme o filho de Miller Guerra, Gonçalo, recorda o quão furioso ele se sentira depois de um encontro com salazar a quem fora dar conta das suas impressões sobre uma viagem a Moçambique e a quem criticara o facto de o regime ter canalizado a água dos rios e nascentes para as aldeias, mas a troco do pagamento de uma taxa. O ditador respondera-lhe que importância teria isso já que «os pretinhos» não precisavam assim de tanta água quanto os brancos.
Mas o que poderia esperar-se de um crápula que, anos antes, embaraçara os seus embaixadores junto de vários países, que não souberam explicar porque, perante a morte de Hitler no seu bunker de Berlim, ele decretara o luto oficial durante três dias?

Já quanto a Camilo Mortágua, mais do que o imperativo ético, vigorou sempre a coragem e o gosto pela ação. Por isso mesmo ele esteve em três das mais mediáticas ações de contestação ao Estado Novo: a mediática ação de controlo do paquete «Santa Maria», o desvio do avião de Marrocos para Lisboa a fim de atirar milhares de panfletos sobre Lisboa, Barreiro e Beja, e o assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz.
Juntamente com outros heróis impacientes, que viam na ação armada a forma de derrubar o regime, Camilo Mortágua esteve em todas esses momentos, que tiveram algo de pioneiro já que, ninguém até então se lembrara de desviar navios ou aviões para chamar a atenção do mundo para as suas causas. E também neste documentário surgem revelações singulares. Numa delas Camilo Mortágua conta como, impedidos de trocar o dinheiro obtido na Figueira da Foz por o regime rapidamente ter declarado as respetivas emissões fora de circulação, eles tentaram quem o trocasse e encontraram um rápido interessado: o insuspeito Banco do Vaticano, que pretendia para tal uma comissão de 60%.


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