quinta-feira, 8 de maio de 2014

FILME: «Os Despojos do Dia» de James Ivory (1993)

Em 1991 «Regresso a Howards End» constituíra um assinalável sucesso ao juntar a realização de James Ivory com as interpretações de Anthony Hopkins (a conhecer então o seu período de maior notoriedade graças a «O Silêncio dos Inocentes»!) e de Emma Thompson, também muito conhecida desde que estivera associada ao então marido, Kenneth Branagh, nalgumas bem sucedidas adaptações shakespearianas.
Não se revelou, pois, complicado o financiamento para outro projeto com a mesma equipa e muito afeiçoado pelo realizador: a adaptação do romance escrito por Kazuo Ishiguro, um escritor inglês de origem japonesa.
Para o argumento, a música, a fotografia e a produção, Ivory voltou a contar com os seus habituais colaboradores, que lhe davam o ensejo para retomar os temas recorrentes da sua filmografia: a responsabilidade individual, o peso dos preconceitos e das determinações sociais e culturais e as relações singulares entre as pequenas histórias e a História com agá grande.
Desdenhado por muitos cinéfilos, que não o consideram um autor, o norte-americano (quantas vezes tido como britânico!) consegue com «Os Despojos dos Dia» um dos seus maiores êxitos, graças à delicadeza dos sentimentos e da acuidade da análise que demonstra.
Em 1956 um velho mordomo inglês, James Stevens, está ao serviço do norte-americano Lewis, o novo proprietário de Darlington Hall quando empreende uma viagem para ir ao encontro de Miss Kenton, a governanta que, vinte anos trás, trabalhava na mansão e estava manifestamente apaixonada por si. Infelizmente ele nunca soubera compreender os sentimentos dela, nem os sinais óbvios que lhe endereçara, pelo que acabara por aceitar o pedido de casamento então formulado por outro mordomo.
Stevens está agora disposto a pedir-lhe para que volte a trabalhar consigo. Pouco antes da guerra, ambos tinham estado ao serviço de Lord Darlington, um político importante, encarregado oficiosamente de reaproximar os laços entre a Inglaterra e a Alemanha, e voluntariamente cego para a verdadeira natureza do nacional-socialismo, de que se constituíra entusiástico apoiante. Daí que, na época, ele recebesse frequentemente dignitários nazis e nem hesitasse em recambiar para a Alemanha duas criadas judias, que ali tinha ao seu serviço.
Bem tentara Lewis, então congressista norte-americano, e futuro proprietário da mansão, alertá-lo para a monstruosidade hitleriana.
Demasiado convicto dos seus deveres, Stevens - que era, ele próprio, filho de outro mordomo - não se permitira emitir qualquer juízo sobre esse comprometimento do patrão, mostrando-se tão cego quanto o já era a respeito dos sinais de senilidade do progenitor, cujos últimos momentos seriam acompanhados pela sempre atenta miss Kenton.
Cioso de cumprir escrupulosamente o seu papel e de não extravasar a classe social com que se identificava, só no crepúsculo da sua vida Stevens é capaz de reconhecer quanto essas atitudes tinham prejudicado irreversivelmente duas existências.
No romance, que Ivory adaptou, Stevens é o narrador. Aqui encarna um personagem entre tantos outros. O grande talento de James Ivory é o de mostrar uma sociedade onde cada um tem as suas razões para assumir um papel dentro de uma rede de coordenadas sociais, que podem dificultar-lhe uma perspetiva de conjunto, e até uma reação humanista. Por exemplo Lord Darlington, que acabará por pagar cara a  sua amizade com os nazis, nunca é apresentado como um monstro nem como um inconsciente. Lewis será acutilante quando o considerará um «amador» em política, porque se deixara assombrar pelos remorsos para com um amigo alemão vitimado pela crise, que sacudira a Alemanha na sequência do Tratado de Versalhes de 1919.
Lewis, pelo seu lado, nada tem de santo, pois não passa de um homem que nunca negligencia os seus interesses.
A exemplo de Luchino Visconti que, enquanto vivo, foi tão subestimado sobre as suas reconstituições históricas, James Ivory também é criticado pela riqueza dos seus cenários e guarda-roupa, que o caracterizam como um tarefeiro muito preocupado com a decoração. Mas, na realidade, em qualquer dos seus filmes ele preocupa-se em analisar com justeza os conflitos existentes em cada uma das épocas por eles respetivamente tratadas. Nas suas primeiras obras ele denunciara sem tibiezas as ilusões «universalistas» dos colonizadores ocidentais na Índia para o que já contara com a colaboração, como argumentista, da escritora Ruth Prawer Jhabvala, cuja sensibilidade tanto influiu na obra posterior do realizador.
Nos filmes de Ivory o indivíduo nunca é visto com desprezo ou superioridade, muito embora, nunca esteja suficientemente liberto de constrangimentos para que possa fazer as escolhas, que melhor lhe conviriam. Nomeadamente, quando tem de se deixar submeter, sem os questionar, aos «grandes princípios» da classe dominante.
O que é patético no papel do mordomo, tão excelentemente representado por Hopkins, num dos seus principais desempenhos, é que ser ele o primeiro a ter consciência dos seus limites, muito embora não veja forma alternativa de se comportar. É deliciosa a cena em que miss Kenton o surpreende a ler os seus romances cor-de-rosa e o sente envergonhado pela surpresa desse desmascaramento. E impressionante essa outra cena em que se recusa a encarar o declínio irreversível do pai.
Tal como em «Regresso a Howards End» , em que era um tirano doméstico, Hopkins desempenha aqui o papel de um doente afetivo só tardiamente consciente de tudo quanto perdeu...





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