segunda-feira, 12 de maio de 2014

IDEIAS: Cantar ou retomar a fala (II)

Pode o ato de cantar converter-se em assunto filosófico? O ensaio de Vincent Delecroix - «Chanter» - publicado na Flammmarion, tende a confirmá-lo.
Como víramos no texto anterior, no início os homens  comunicavam com uma mistura indistinta de palavras faladas e cantadas. Só gradualmente é que o canto e a fala se autonomizaram para os propósitos, que lhes foram sendo associados e que tinham a ver com a caracterização do que viam de acordo com uma perspetiva mítica ou mais racional.
Mas, na sua vontade de apreender a essência do mundo e de lhe clarificar as contradições, a filosofia nuca prescindiu da injunção mitológica enquanto preciosa ferramenta do conhecimento.
O personagem mitológico seria compreendido na sua relação com a alteridade, representando o desejo, que tanto ameaçaria quem o quisesse usufruir sem  os limites impostos pela sociabilidade.
O personagem mitológico deixaria de exprimir a voz de uma pessoa concreta, mas de um imaginário coletivo a contas com a angústia quanto ao seu devir.
Ulisses tornar-se-ia no primeiro homem moderno ao deixar-se prender ao mastro do navio para se deleitar com o canto das sereias, mas sem se lhes submeter, seguindo adiante com o seu navio. Nesse dia o homem passou a sobrepor a visão mítica do que via à força argumentativa da própria realidade.
Mas o canto continuaria a existir como fruição do que era tido como belo e para a efabulação dos mitos também eles entendidos como objetos de pedagogia ou de mera diversão. A exemplo da música, o canto contribuiria graças à dopamina para o reforço das emoções ao apelar para a expectativa quanto à nota ou harmonia seguinte, para a surpresa e a antecipação.
Temos assim a música e o canto como criadores de emoções tão básicas quanto o são a satisfação ou a frustração.
Mas, como entender então o caso de Castafiore, a divertida personagem criada por Hergé no seu álbum «As Sete Bolas de Cristal», que é uma das poucas representações femininas a aparecerem nas aventuras de Tintim? Muitas vezes ela aparece sem aparecer nas vinhetas, já que só surgem os efeitos das suas singulares interpretações operáticas através de símbolos musicais. distorcidos Um pouco como se fosse deus, lembrando como em relação a Callas ou a outras grandes cantoras de ópera se aplicou facilmente o adjetivo de «divinas».
Duas constatações podem ser feitas a propósito da Castafiore e da vinheta que sobre ela inserimos:
· canta horrivelmente mal, mas os espectadores acotovelam-se para presenciar os seus concertos;
· a equívoca utilização da palavra «formidable», que em francês tanto pode significar magnífica, como aterrorizadora;
A Castafiore constitui, pois, um contra-mito comparativamente com o canto das sereias, que abordámos no texto anterior.
Como compreender o sucesso de Castafiore sobre quem todos parecem obrigar-se a elogiar?
Explica-se no facto de o canto possuir uma espécie de polaridade: ora é sublime e sedutor, ora revela-se intragável mas beneficia do facto de a Ópera possuir um valor social.  Pode-se não gostar do que lá se vê ou ouve, mas ser-se ali visto ou ouvido confirma um estatuto de integração numa classe, que importa expor.
Às vezes dá para nos espantarmos com a seriedade, a importância, que passámos a conferir a uma atividade a princípio considerada como um entretenimento, uma diversão.
Os melómanos mais entusiastas associam o canto a uma espécie de voz interior pura em contraponto com uma voz exterior, que procura equiparar-se-lhe. Hoje deixamo-nos seduzir pela especificidade, pela alteridade de uma voz, que não precisa de ser “perfeita”. Era o que sucedia com os castratis, dos quais é justo realçar Farinelli como um dos mais conhecidos, até pelo papel que o excelente filme de Gérard Corbiau teve na sua divulgação.
A sua voz era sublime e produzia nas mulheres um efeito sexual perturbador. Mas ele personificava a intenção de se criar um Monstro só para cumprir objetivos estéticos. Como se se quisesse transformar o homem num mero instrumento.
Farinelli constituía um paradoxo, porque considerava-se que a voz pura seria dessexualizada e o resultado era manifestamente o contrário. Mas, ao mesmo tempo ninguém estranhava que, na época, interpretasse papéis viris como sucedia com Aquiles ou outros heróis míticos.
Que importava tal incongruência se, até há pouco tempo, era perfeitamente natural encontrar sopranos obesas a interpretarem papéis de jovens românticas e casadoiras?
O canto acaba por ser a expressão da nossa mortalidade ou não seja ele produzido pela expiração. Ora não se associa o momento da morte ao último sopro do que ainda vivia?
(texto baseado no ensaio «Chanter» de Vincent Delecroix), ed. Flammarion)



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