terça-feira, 12 de abril de 2016

Para que não nos esqueçamos...

Estamos num daqueles dias em que as notícias têm pouco interesse. Guterres é ouvido na ONU mas as suas hipóteses de chegar a secretário-geral são limitadas. Dilma perdeu a primeira votação no processo de impeachment, mas ninguém aposta se a derrota será sua, se dos adversários. Há mais uma grande operação da Polícia Judiciária e já não nos surpreendemos com a detenção de uns quantos suspeitos de envolvimento em esquemas de corrupção na administração pública. 
É uma boa altura para retomarmos o excelente texto de João Ramos Almeida e José Castro Caldas no «Le Monde Diplomatique» de março sobre a reação de um conjunto de comentadores de publicações económicas aos últimos meses do governo de José Sócrates e aos do período de sujeição à troika.
Em textos anteriores vimos como, ainda com Teixeira dos Santos como ministro das Finanças, esses jornalistas contribuíram para a criação da ideia de se ter gasto acima das possibilidades, sendo obrigatório proceder a cortes nas despesas do Estado. Vigorava a ideia de não termos de culpar os outros, nomeadamente os que tinham causado a crise internacional marcada pela falência da Lehman Brothers, porque s responsabilidade só a nós, os despesistas, caberiam.
Os que denegriam diariamente José Sócrates e defendiam abertamente a entrega do poder à direita afiançavam não existir outra alternativa que não fosse a sujeição aos ditames dos mercados. Por isso o discurso dominante era o do incontornável sacrifício: teríamos de empobrecer, porque só assim ganharíamos o direito à redenção.
Hoje situar-nos-emos no período entre maio de 2011 e setembro de 2012, quando esses comentadores começaram por defender a oportunidade do ajustamento como garantia para “modernizar” o país. O pior é que, muito rapidamente foram surpreendidos pela dimensão da recessão e do desemprego, interpretando-os ainda como efeitos colaterais de um tratamento benigno. Mas, quando essa explicação começou a confrontar-se com uma enorme constatação social - que se traduziria na manifestação de 15 de setembro de 2012 - leram a evolução dos acontecimentos como o resultado de uma receita que estava a falhar … por causa da “falta de coragem” do governo de Passos Coelho em levar as “reformas” até ao fim.
Vejamos, então, exemplos do alinhamento de António Costa, então diretor do «Económico», que muitos atribuem como grande causador da falência desse projeto jornalístico, e Pedro Santos Guerreiro, atual diretor do «Expresso», mas então à frente do «Negócios».
A 5 de maio de 2011, António Costa escrevia: Temos uma oportunidade, nunca é única nem a última, mas esta é de ouro, para reescrevermos a nossa História... Já escolhi em quem vou votar no próximo dia 5 de Junho: na troika e no plano de reforma que nos permitirá ter um Estado muito diferente, outro Estado, para melhor, do que aquele que temos, mais justo, mais competitivo e criador de riqueza”.
E Pedro Santos Guerreiro não mostrava menos entusiasmo com a receita que se seguiria: “Esta é uma oportunidade única para mudar de era, para um regime de estabilidade nominal, com espaço para o mérito e em que a melhoria do bem-estar (e dos salários] esteja assente na competitividade… Isso é criar, enfim, um Estado moderno.”
As primeiras surpresas não tardaram: em vez de cortar na despesa, Passos Coelho começou por aumentar impostos. Em 6 de setembro, o mesmo comentador sugeria onde desejava ver implementados os cortes regeneradores: Para cortar despesa do Estado, é preciso ir aos salários da Função Pública ou às pensões, é preciso ir às empresas do Estado, é preciso ir à Saúde e à Educação”. E, como havia uma lógica do tipo “ se um diz mata o outro diz esfola”, a essas palavras do então diretor do «Negócios», respondia o mesmo Costa no «Económico»: O Governo tem de rescindir contratos com, pelo menos, 70 mil funcionários públicos em 2012.
Para estes fanáticos da austeridade os meses seguintes começariam a ser perturbadores: a recessão agravava-se de mês para mês, acompanhado do aumento de desempregados nas filas à porta dos Centros de Emprego.
No final de fevereiro Costa queria convencer-se do sucesso da receita, quando já ela metia água por todos os lados: Porque é preciso ajustar o nível de vida dos portugueses ao seu nível de criação de riqueza. E, de forma mais estrutural, preparar o país para uma nova realidade, para um novo Estado social, que não vai proteger tudo e todos, mas apenas os mais necessitados e fragilizados. E para um novo Estado económico, mais competitivo e que promova o crescimento”.
Seis meses depois e com sinais da vontade coletiva em vir para a rua contestar o governo, Guerreiro começa a ganhar alguma sensatez, reconhecendo o fracasso das políticas anteriormente tão do seu apreço: Chegará a altura em que deixaremos de perguntar de quem é a culpa e quereremos ouvir apenas um pedido de desculpa. Um sinal de arrependimento, uma confissão de erro, uma liquidação da dívida moral do país sobre o seu povo. Talvez então recomecemos a acreditar. No que nos dizem. Neles. Nos tingidos pela incompetência. Nos ungidos de espírito de missão. Nos que falham. (...) 0 anúncio de medidas de austeridade feito pelo primeiro-ministro ao entardecer de sexta-feira, antes de um jogo de futebol, é uma tragédia (...) 0 país ainda pode sair disto com sucesso, mas o governo está a fracassar.”
Antecipando-se ao concorrente no reconhecimento do erro, Guerreiro conclui a 10 de setembro: “Não está a resultar (...) A troika devia olhar olhos nos olhos dos portugueses e responder a três perguntas: acredita mesmo que, com mais austeridade generalizada, a economia vai começar a crescer no segundo trimestre do próximo ano? Acredita mesmo que Portugal vai conseguir a redução brutal do défice em cada um dos próximos dois anos depois de ter falhado o deste ano? Acredita mesmo que Portugal conseguirá pagar a sua dívida pública já superior aos fatídicos 120% do PIB?”
Cinco dias depois as avenidas de Lisboa encher-se-iam de centenas de milhares de indignados, que exigiram o fim da austeridade e disseram não ao escândalo da TSU.
Nesse dia em que Passos e Portas terão tremido faltou a voz avisada de quem propusesse o assalto ao “Palácio de Inverno”. Porque a atmosfera insurrecional era entusiasmante ao ponto de se chegar a acreditar que as coisas não continuariam a processar-se como até então.
Infelizmente, e como acontece demasiadas vezes, o processo concluiu-se com o ordeiro regresso a casa de quem viera para a rua exorcizar o descontentamento. A receita continuou a ser aplicada, mas a direita compreendeu que escapara de boa e iniciou uma campanha propagandística baseada na mentira e num tipo de «novilingua», que iludiria muitos incautos nos dois anos seguintes. Até porque, “oportunamente”, começava a preparar-se na Procuradoria-geral da República o recurso a uma acusação, que visaria eliminar politicamente José Sócrates e prejudicar seriamente as hipóteses de sucesso eleitoral do Partido Socialista...


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